Tirando vida …da terra seca

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Publicada em 29 de julho de 2001
O Estado de S. Paulo

Há um Nordeste que está aprendendo a conviver com a seca. Ele diz ‘não’ à
falta de água, à miséria e à fome. Também começa a recusar o
assistencialismo, traduzido por carros-pipa, frentes de trabalho e cestas
básicas. É ainda uma região que sofre com a falta de chuvas, crônica. Este
ano, elas vieram. Irregulares, atrasadas, insuficientes. Ficou a “seca
verde”. Os grãos conseguem brotar, mas não vingam. Em muitos lugares, um
imenso tapete de cobertura vegetal recobre os campos. Parecem prósperos.
Estão longe disso.
Para muitos nordestinos, a subsistência ainda depende da água que cai do
céu. Se ela vem, é hora de preparar a terra, plantar e rezar para que as
chuvas voltem mais à frente para a rega das sementes. Quando isso não
acontece, é o pior dos mundos. Perde-se tudo o que foi investido na
plantação. Fica a fome. É um ciclo histórico e vicioso.
Pela primeira vez, porém, surgem propostas concretas para mudar essa
história. São casos isolados, espalhados pelo semi-árido. Como as cisternas
que acumulam as águas das chuvas e impedem que famílias abandonem sua terra.
Ou as barragens subterrâneas que retardam a perda da água do lençol
freático. O pequeno agricultor começa a aprender técnicas de cultivo
alternativas e eficazes. São projetos simples, baratos e, sobretudo,
exemplares. Servem (ou deveriam servir) de modelos para outras localidades
que ainda insistem em brigar com a natureza.

‘Ah, isso aqui é minha bola de ouro’
EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
SÃO VICENTE DO SERIDÓ – Essa história começa em março de 1999, época em que
se registrava uma grande seca no Nordeste. No Cariri, semi-árido paraibano,
os jornalistas do Estado Edson Luiz e Wilson Pedrosa foram documentar o
problema. Encontraram uma família cuja única refeição do dia era um copo de
água com açúcar. O drama comoveu a irmã Clarete, diretora do Sistema
Vicentino de Educação, uma rede de escolas paulista. Em pouco tempo, ela
conseguiu sensibilizar professores e muitos pais de alunos. Hoje, essa ajuda
dá novas esperanças a mais de 2.700 moradores de São Vicente do Seridó.
Na região do Cariri, chove muito pouco. Este ano, menos de 300 milímetros. O
normal seria 800 milímetros. As chamadas trovoadas de verão foram escassas e
irregulares. Muitos pequenos agricultores plantaram tarde o milho e o
feijão, mas não sabem se vão vingar.
A agricultora Josefa Marques da Silva, de 55 anos, acredita que a safra de
feijão já está perdida. Seria o início de um drama para seus 9 filhos e 14
netos. Mas ela não entrou em desespero. Nem deve. Ao lado de sua casa
recém-reformada, Josefa cultiva uma pequena horta que está vigorosa. Tem
alface, cenoura, salsinha, pimentão, coentro, cebolinha, couve e frutíferas
como mamão, acerola e limão. “Ah, isso aqui é a minha bola de ouro”,
confessa.
Debaixo de um sol forte, a horta consegue sobreviver graças as duas regas ao
dia que Josefa faz. A água vem da cisterna que está no quintal. É um poço
circular construído ao lado da casa. É ele que acumula a água da chuva que
cai do telhado. Antes, ela escorria para o chão seco e desaparecia.
Feira – A produção é modesta, mas suficiente para aumentar o cardápio da
família. “Cheguei a ver meus filhos chorando de fome. Hoje, se vejo um neto
sofrendo, já tenho o que dar a ele”, orgulha-se. Josefa distribui ainda os
produtos aos parentes e amigos que estão necessitados. O restante é vendido
na feira da cidade e o trocado vira carne, peixe e feijão.
Em São Vicente do Seridó, já são 93 cisternas e devem chegar a 130 até o fim
do ano. A seleção das casas é feita por Maximiniano Pedro da Silva, de 57
anos, o Téo. Quando a secretária Dorina Torre de Alencar visitou a cidade,
levando 2.500 cestas básicas da rede de escolas, ela procurou o prefeito e
pediu alguém para cuidar da mercadoria. Foi aconselhada a procurar Téo.
Para levar ajuda às famílias da Paraíba, o Sistema Vicentino de Educação
pede R$ 5,00 por mês para cada pai de estudante. O projeto também reforma as
casas dos moradores ou constrói novas, quando não há saída. Há cinco anos,
Maria Aparecida Barbosa de França, de 33 anos, mora com Genaro Paulo dos
Santos, de 52. “Quando vim para esta casa de taipa, disse ‘vixe, Maria’. Mas
o que podia fazer?”, pergunta ela. Na quarta-feira, Maria recebeu a visita
de Téo e agora sonha com uma casa e vida nova.

Município vive sem água e sem saída
FREI MARTINHO – Os 2.950 habitantes de Frei Martinho, um pequeno município
na região do Seridó, no lado paraibano, enfrentam uma epidemia de dengue,
mas a maior preocupação é com a falta de água. As torneiras estão secas.
Todas. Para contonar o problema, foram criados tanques públicos, onde os
moradores buscam a água em baldes e latas. O racionamento foi a primeira
ação da prefeita Ana Adélia Nery Cabral (PMDB), que tomou posse no início do
ano.
O que seria uma medida impopular se tornou solução para muitos. Sem isso, a
água só chegava na parte baixa da cidade. Era um privilégio para poucos. “Só
Jesus pode nos salvar”, afirma Ana Adélia. Desde que a Companhia de
Abastecimento de Água e Esgoto da Paraíba impôs o regime de duas horas de
fornecimento de água por dia, os tanques serviram para “democratizar” a
distribuição.
Duas vezes ao dia, pela manhã e no fim da tarde, formam-se filas nos tanques
da cidade. No resto do dia, estão secos. Isso porque eles só ficam cheios
quando a caixa-d’água do único hospital da cidade é abastecida. “Parece que
aqui é o lugar dos esquecidos, nunca melhora”, reclama a dona de casa Iris
Leyde Rodrigues Mauriz, de 26 anos. Desde que ela se mudou para sua nova
casa, nunca viu a água chegar às torneiras.
O sentimento de esquecimento é geral. Um ônibus que deveria chegar ao local
só existe no letreiro: Campina Grande-Frei Martinho. Na verdade, a rota
termina em Picuí, separada por 18 quilômetros de estrada de terra. Os
moradores são obrigados a pagar R$ 5,00 para serem levados até o município.
Merenda – A Escola Estadual Frei Martinho também já teve problemas com a
falta de água. Nas duas últimas vezes que isso ocorreu, os estudantes foram
merendar em casa. A limpeza nos banheiros não é feita com freqüência. A
solução foi pagar R$ 30,00 para um carro-pipa abastecer a caixa da escola a
cada oito dias.
“Grande parte da Paraíba está na mesma situação que Frei Martinho. O governo
federal deveria ver isso”, afirma a prefeita Ana Adélia, que considera estar
vivendo num deserto. Este ano, choveu 174 milímetros para uma média que
normalmente seria de 600 milímetros. “Precisamos das cestas básicas, é
prioridade, mas com o tempo precisamos de uma política de convívio com a
seca.”
Nas comunidades de Frei Martinho, distantes do centro, a falta de água
também é um problema. Mesmo as que são abastecidas por um açude da região, o
Timbaúba, deverão enfrentar problemas até o fim do ano. “Nunca vi esse poço
tão seco assim”, diz Genival do Nascimento, de 56 anos, que trabalha no
açude. Este ano, o nível de água só subiu “meio palmo”, quando o normal
seria uns 3 metros.

‘Quando chegou a cisterna ali, foi a maior alegria’
PÃO DE AÇÚCAR – À beira do Rio São Francisco, o município de Pão de Açúcar
(AL) deveria estar despreocupado com a falta de chuvas no Nordeste. Difícil
acreditar que a 6 quilômetros da margem do rio, nas áreas de sequeiro,
pessoas morressem de fome por causa da seca. Mas é o que ocorria. Na região,
só chove em quatro de cada dez anos. Nesta década, ainda não vieram as
trovoadas de janeiro, que permitem o início do plantio. Nessas
circunstâncias, plantar é uma loteria.
A cidade começa a diminuir esse risco com políticas de convívio com a seca.
Já são cem cisternas na região, muitas comunitárias. Além delas, estão sendo
construídas as barragens subterrâneas. O método tem uma lógica certeira:
escava-se a terra até atingir a parte mais profunda da chamada pedra-mãe. Em
seguida, põe-se uma lona que retém a água que escoa até o lençol freático.
Com isso, uma grande área fica com o solo mais úmido. Nas proximidades,
poços-amazonas são escavados e permitem retirar a água de uma pequena
profundidade. A vazão é de cerca de 5 mil litros de água por hora e serve
para dar aos animais ou irrigar terrenos secos.
Em locais onde é possível retirar água do lençol freático, foram criados
poços artesianos, cujas bombas são movidas a energia solar. Até setembro,
espera-se que seja iniciado o criadouro de peixes, sobretudo tilápias. Numa
fazenda, é produzido pimentão orgânico. A primeira safra, do ano passado,
foi toda exportada para a Holanda.
Por trás desses projetos que funcionam como laboratórios, está o trabalho
das Organizações Não-Governamentais Visão Mundial e Fundação Teotônio
Vilella. É um novo cenário que surge no semi-árido nordestino. Além das
duas, outras ONGs, como a Diaconia e a Articulação do Semi-Árido (ASA),
estão levando os projetos de convivência com a seca a locais até então
esquecidos.
Cuidado – “Em Israel, há lugares muito mais secos que produzem muito mais do
que aqui”, afirma o técnico José Roberto Feitosa, de 41 anos. Para o
presidente da Federação Intermunicipal das Entidades Comunitárias de
Alagoas, Pedro Lúcio Rocha, a participação de ONGs permite que as pessoas se
envolvam mais com as iniciativas, o que melhora os resultados. “Se tenho
consciência de que o projeto é meu, zelo muito mais por ele.”
Moradora da comunidade de Piau, Maria de Lourdes dos Santos sabe o que isso
representa. Antes, só via as placas de programas de governo chegarem à
região, mas nada de melhorar a vida. Quando a Visão Mundial decidiu
construir uma cisterna comunitária perto de sua casa, foi um salto. Nas
secas passadas, bebia água do riacho mesmo. Trabalho não tinha e passava
fome. “Quando chegou a cisterna ali, ave-maria, foi a maior alegria”, diz.
Hoje, com as pernas ruins, são suas filhas Ana Paula e Valdice dos Santos
Barros que buscam os quatros potes de água da nova fonte. (Eduardo Nunomura,
enviado especial)

Uma história de milhões de flagelados
As secas no Nordeste são históricas. As “soluções” também. Em 1958, por
exemplo, surgiram as frentes de trabalho para a construção de açudes e
limpeza de estradas. Mais de 500 mil pessoas foram alistadas. Na estiagem de
1979 a 1983, foram 3 milhões de flagelados. Em 1992, mais de 2 milhões de
nordestinos abandonaram o campo e, muitos, até mesmo seu Estado. Para quem
ficou, foram distribuídas cestas básicas.
Este ano, segundo especialistas, marca o início da pior seca da primeira
metade deste século (cujo pico deve ocorrer daqui a quatro anos). No mês
passado, o ministro Raul Jungmann reconheceu a culpa do governo de não ter
conseguido adotar medidas efetivas de convívio com a seca. “A distribuição
de cestas básicas e o aluguel de carros-pipa é reconhecimento do fracasso”,
admitiu o ministro, na ocasião.
Como solução de emergência, o governo criou a Comissão Setorial do Convívio
com o Semi-Árido e Inclusão Social, presidida por Jungmann. Inicialmente,
estão sendo distribuídas quase 800 mil cestas básicas. A solução, paliativa,
deverá ser substituída pelo Programa Bolsa-Renda, que dará R$ 60,00 a cada
família carente, mais R$ 12,00 para compra de alimentos.
A medida atende a uma antiga reclamação de muitos municípios, que querem que
esse dinheiro circule nas suas cidades, aumentando a arrecadação. Outra
queixa é a distribuição das cestas básicas. Um exemplo: em Caruaru (PE), em
2000, foram 20 mil cestas; este ano, só 4.500. “Famílias carentes não
puderam ser alistadas”, reclama o prefeito Antônio Geraldo Rodrigues (PFL).
Permanentes – Além das cestas básicas e dos carros-pipa, a proposta é criar
políticas “emergenciais, mas com cara de permanente”, nas palavras de
Orlando Muniz, secretário-executivo da comissão. Entre as soluções está a
integração de uma série de projetos de outras pastas para a melhoria de vida
dos habitantes do semi-árido. Leia-se Bolsa-Escola, Saúde da Família,
saneamento básico, agricultura familiar e erradicação do trabalho infantil.
O governo reconhece que a essas soluções deverão ser integradas outras, já
em prática pelas organizações não-governamentais. O projeto 1 milhão de
cisternas, encampado pelo Ministério do Meio Ambiente, é um exemplo disso.
Cada cisterna custa cerca de R$ 500,00 e permite que uma família de seis
pessoas consiga sobreviver durante o período de estiagem.
“Temos de mudar essa realidade a partir dessas soluções básicas. Não dá mais
para viver com o clientelismo”, afirma o maranhense Muniz. Na próxima
semana, a comissão do governo espera reunir as propostas efetivas de
convívio com a seca para que sejam levadas aos 1.031 municípios do
semi-árido, onde vivem cerca de 11,1 milhões de pessoas.

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