Publicada em 20 de agosto de 2001
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Os avanços da ciência têm levantado questões inteiramente novas. Pode um
cientista modificar uma célula embrionária para produzir um novo órgão? A
clonagem humana é um crime? Alimentos modificados geneticamente devem ser
produzidos no Brasil? Um teste de paternidade pode ser realizado por um
não-médico? Quem deve controlar um banco de esperma? Partes biológicas de um
ser vivo podem ser patenteadas?
Bem-vindos ao direito de 4.ª geração, batizado de biodireito, um complexo e
embrionário campo do saber jurídico. É um ramo onde as leis são escassas e
as interpretações, múltiplas. Os advogados, promotores e juízes dispostos a
encarar esse desafio ainda são poucos.
Terno e gravata – A relação entre biociência e direito é como um namoro
instável. Por mais que tentem, as duas partes não se acertam. Noivado e
casamento, nem pensar. Até hoje o estudante de direito Leonardo Grecco, de
22 anos, se lembra da primeira vez em que pisou em um laboratório da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Vestia terno e gravata. “O que
você veio pegar aqui”, perguntou um pesquisador, encarando-o.
Na verdade, há dois anos, Grecco começava a trabalhar no Departamento de
Genética e Evolução da universidade a convite do professor Gonçalo Guimarães
Pereira. Com as descobertas que estavam surgindo e as que sabia que ainda
estão por vir, Pereira viu a necessidade de ter um assessor jurídico para
resolver problemas legais.
Filho de advogado, Grecco cresceu ouvindo as normas do direito clássico.
Decidiu seguir os passos do pai, mas em área diferente. Ao assistir a uma
palestra do professor Gonçalo sobre genoma, notou que aquele era um ramo
promissor. Hoje, ajuda o pesquisador a resolver problemas com contratos e
orienta até onde os cientistas devem tomar cuidado com o conhecimento que
produzem. “A assessoria jurídica é importantíssima porque impede que uma
descoberta científica seja perdida e deixe de ser explorada comercialmente”,
explica.
No laboratório da Unicamp, Grecco conheceu a também estudante de direito
Nícia Barduchi, de 25 anos. Além da faculdade de direito, que faz na
Pontíficia Universidade Católica de Campinas, ela cursa biologia na Unicamp.
Aposta tudo num currículo especializado. “A biologia é minha emoção e o
direito, a minha razão.” Nícia decidiu complementar o curso científico com o
jurídico ao perceber que só com o primeiro teria um mercado muito restrito.
Patentes – A área de patentes é uma das mais reluzentes para os
bioadvogados. As principais universidades, empresas do setor, centros e
órgãos de pesquisa começam a criar seus departamentos específicos para
tratar dessa questão. A Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São
Paulo, por exemplo, tem seu Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de
Tecnologia.
As primeiras patentes de biotecnologia registradas pelo Instituto Nacional
de Propriedade Intelectual começaram a ser pedidas a partir de 1996. Hoje,
são 224. Comparando com os Estados Unidos, é quase nada. Lá, a média anual é
de 6 mil patentes.
O maior desafio desses novos profissionais é transitar em uma área
praticamente desregulamentada. Não há nada parecido com os códigos Civil ou
Penal. É natural esperar que eles sejam chamados, no futuro, para ajudar a
criar as normas e pareceres desse campo. “A primeira leva vai ser muito
requisitada”, arrisca a advogada Patrícia Bono, de 33 anos.
Coordenadora da Comissão de Bioética e Biodireito da seção paulista da Ordem
dos Advogados do Brasil, Patrícia ocupa parte do seu tempo dando palestras
sobre o tema. Nelas, a platéia é formada por uma maioria de jovens
advogados. “O que mais me fascina é a possibilidade de fazer estudos e obter
conclusões para áreas novas dentro do direito”, confessa.
Desafio – Para suprir a demanda por esses profissionais, começam a surgir os
cursos de mestrado e doutorado. A advogada Adriana Diaféria, de 28 anos, faz
o doutorado em biotecnologia na PUC de São Paulo. Ela começou a se
interessar pelo tema em 1997, na época da clonagem da ovelha Dolly. Ficou
encantada. Além do curso de pós-graduação, trabalha no escritório de
advocacia Demarest e Almeida, que já possui um grupo especial de
biotecnologia. Sobre as possibilidades futuras, ela é cautelosa: “Ainda é um
campo limitado no Brasil, pois a regulamentação existente é restrita a
algumas atividades de biotecnologia. Há muito o que expandir.” Mas, ela
sabe, é uma área repleta de desafios.
Direito e ciência se desentendem ao avaliar o que é certo ou errado
Preside a Comissão Especial de Bioética e Biodireito da seção paulista da
OAB, o advogado Renato Magri. Ele considera “intolerável” o patenteamento de
um gene. O geneticista Sergio Danilo Pena, membro da comissão de bioética do
Conselho Federal de Medicina (CFM), pensa de forma oposta: “Se eu tivesse
feito uma descoberta científica quentíssima de um gene, com que direito
teria de perder essa patente que poderia beneficiar milhões de brasileiros?”
A contradição desses dois personagens resume com exatidão o estágio atual do
biodireito.
“O direito foi, sem dúvida, apanhado de surpresa e seu equipamento
conceitual se revelou inadequado, despreparado e, em algumas situações, até
mesmo superado para equacionar os problemas propostos pelo progresso
acelerado das ciências biomédicas”, escreveu o juiz aposentado Alberto Silva
Franco, na Revista Bioética, do CFM.
Para o editor da revista, o psiquiatra Luiz Salvador de Sá, a ética não pode
ser uma especialidade da área de saúde. “Na medicina, não dá para separar
ética de bioética. Mas é possível pensar numa especialização em biodireito
para advogados”, diz. “Um profissional de direito não pode fechar os olhos
para a ciência”, emenda o advogado Celso Antônio Pacheco Fiorillo, professor
de direito difuso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Nos EUA, há quase 20 mil advogados especializados em ciência, enquanto no
Brasil não passam de uma centena. No Congresso tramitam quatro projetos de
lei sobre diversidade biológica. Atualmente, prevalece a Medida Provisória
2.186, que determina a criação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético,
ainda em fase de constituição pelo Ministério do Meio Ambiente. O conselho
será o responsável pela criação e fiscalização de normas técnicas sobre o
tema.
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) foi criada em 1995
para pôr em prática a Lei de Biossegurança e já vem sendo criticada. “Ela
está com muita ligeireza para liberar os transgênicos. Falta um debate com a
sociedade”, opina o advogado Magri.
Observadora do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, a pesquisadora da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Marília Bernardes Marques lembra que com
freqüência, sobretudo nos EUA, questões éticas envolvendo a ciência terminam
na Justiça e os cientistas têm de prestar assessoria para solucionar o
problema. “Bons exemplos são as controvérsias entre as leis de patentes e as
normas de pesquisa que envolvem uso de material humano e patenteamento de
microrganismos ou de seqüências de DNA.”
O geneticista Sergio Danilo Pena defende a criação de escritórios que
prestem assessoria científica ao Congresso para ajudar os deputados e
senadores a criarem leis sobre esses novos assuntos. “Principalmente se o
pessoal quiser começar a legislar, que façam então leis com base científica
sólida.” O risco, ele alerta, é a criação de normas que venham a prejudicar
o País. “É muito perigoso em biomedicina, uma área em constante avanço,
criar leis que inviabilizem soluções futuras.”