Publicada em 4 de abril de 2002
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
BUENOS AIRES – O medo que Celia Martinez, de 47 anos, tem de perder o
emprego seria mais um caso entre milhares de argentinos, não fosse por um
detalhe. Ela e outros 49 colegas continuam trabalhando, mesmo depois que os
donos da Brukman Confecciones abandonaram a empresa em 18 de dezembro. Desde
então, as costureiras permaneceram no prédio da Avenida Jujuy, 554, no
bairro Once, e resolveram religar as máquinas. Fizeram uma venda, outra e
depois uma terceira. Seguem produzindo roupas masculinas, e cada um dos
empregados já recebe 600 pesos de salário. No entanto, o futuro desses
trabalhadores que tomaram uma fábrica é incerto.
“Não queremos ser donos, somos costureiras, só queremos trabalhar”, desabafa
Celia, mãe de cinco filhos e uma das “compañeras de Brukman”, como são
conhecidos os 10 homens e 40 mulheres que optaram por essa decisão. A
empresa tinha 115 funcionários, mas nem todos decidiram tomar a fábrica.
Estes se opuseram, foram para o lado de fora e lutam na Justiça por
indenizações.
O sindicato de trabalhadores que representa a categoria também se opôs
porque pretendia seqüestrar os bens dos Brukman para saldar dívidas e pagar
salários atrasados. As costureiras ficaram isoladas, mas não paradas. Um mês
depois da ocupação, voltaram ao trabalho. Algumas ficaram com receio de usar
um material (tecidos, linha e botões) que não lhes pertencia. “Estávamos
recebendo ajuda dos vizinhos. Mas, se nós comíamos, nossos filhos, não”,
lembra Nilda Bustamante, de 40 anos e há sete batendo ponto na fábrica.
Fornecedores que se recusavam a receber os Brukman deram um voto de
confiança. As costureiras já haviam pago as dívidas de luz e gás. O estoque
está sendo mantido com o mesmo tecido usado no passado para confeccionar
marcas como Christian Dior, Yves Saint Laurent e Ralph Laurent. Agora, os
compradores são pequenos comerciantes ou pessoas que aparecem na fábrica em
busca de um paletó bem-feito.
O Ministério do Trabalho busca uma saída para essa situação, que não é
inédita porque trabalhadores da Cerámica Zanon, na cidade de Neuquém, também
ocuparam a empresa há seis meses e mantêm a produção. Diante da pergunta das
costureiras para os oficiais do governo se o que faziam era ilegal,
obtiveram a resposta: “Também não é legal fugir da empresa com tantas
dívidas”. Ontem, oficiais de Justiça foram cumprir um pedido de reintegração
de posse, mas foram impedidos de entrar no prédio.
Os Brukman defendem a desocupação imediata e possível retomada da produção
em algumas semanas. O governo mediou as negociações e condicionou o
pagamento dos salários atrasados com a venda dos estoques. Mas as
“compañeras” temem perder o emprego. Preferiam que o governo cobrasse as
dívidas dos empresários e estatizasse a fábrica. “Poderíamos produzir
aventais para médicos e uniformes escolares, que fazem muita mais falta
nesse momento do que as roupas masculinas. E poderíamos ter mais 200 pessoas
trabalhando”, garante Celia.
Bandeira – Partidos de esquerda tentaram transformar as “compañeras de
Brukman” numa bandeira nacional contra a crise argentina. Elas recusaram.
Sabem que os políticos têm interesses eleitoreiros. “Eles vêm nos apoiar,
mas só da porta para fora. Aqui dentro só queremos manter a fábrica em
atividade”, diz Nilda. “Um desempregado não vale nada nas ruas.” Em 19 de
dezembro, um dia depois da tomada da fábrica, elas permaneceram quietas no
prédio, enquanto milhares de argentinos saíam nas ruas para os panelaços.
Nos dias do estado de sítio, preferiram desligar as luzes. No dia 16, quase
foram retiradas da empresa, por ordem judicial. A acusação era de roubo e
usurpação de material. Os policiais vieram e constataram que as máquinas
estavam lá, assim como os estoques. Permaneceram.
O maquinista Yuri Fernandez, de 39 anos, um dos dez homens entre as
“compañeras”, entende que a situação envolve muito mais do que o seu direito
ao trabalho. Mas a crise argentina leva a casos extremos como esse.
“Chegamos a ganhar dois pesos por semana. Pagávamos para trabalhar. Se
tivermos de sair, o que vamos fazer? Seremos mais alguns nas ruas, nada
mais”, diz Fernandez, pai de quatro filhos.
Os 4.500 metros quadrados dos sete andares da fábrica ainda guardam muitas
boas recordações aos seus funcionários. “No passado, vivíamos felizes.
Tínhamos orgulho de trabalhar aqui. Os Brukman eram bom patrões, pagavam
tudo em dia. No fundo, eu os respeito. Gostaria que fizessem uma boa
proposta e voltássemos a trabalhar. Se isso acontecer, vamos dizer que
cuidamos da empresa deles durante os saques”, confidencia Celia.