O desafio de viver no Japão

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Publicada em 14 de julho de 2002
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
TÓQUIO – Quem viu a Copa do Mundo pela televisão deve ter ficado com a
impressão de que as centenas de brasileiros descendentes de japoneses são
sempre alegres e apaixonados pelo Brasil. Ou ainda que vivem bem e ganham o
suficiente para comprar ingressos que custavam até mais de US$ 500 no jogo
da final. Trata-se de uma imagem imprecisa. Com o fim do mundial e sem as
luzes das câmeras de TV, eles voltaram à dura rotina do trabalho nas
fábricas. Nada de emoção, muito menos de festa. Os dekasseguis, no fundo,
têm muito pouco que comemorar.
Acabou a ilusão. Nem o Brasil se lembrará mais dos dekasseguis nem eles
poderão vibrar tão cedo com um dos símbolos maiores da pátria, a seleção de
futebol. Durante um mês, viveram a emoção de representar um país. Só que a
vida continua, o que para esses brasileiros significa voltar à condição de
trabalhadores sem direitos, sujeitos à humilhação dos chefes, às ameaças das
empreiteiras e ao preconceito da sociedade japonesa. “Há uma geração de
jovens dekasseguis que não têm a possibilidade de sonhar”, afirma o
psiquiatra Decio Issamu Nakagawa.
Perigosos – Especialista no tratamento de pacientes dessa comunidade,
Nakagawa está preocupado com os mais de 40 mil filhos de dekasseguis vivendo
no Japão. Estima-se que de 15% a 30% deles estejam fora das escolas. Muitos
freqüentam apenas o ensino básico. Tão logo deixam de estudar, perdem os
contatos com os colegas, japoneses ou não. Para as autoridades, são
potencialmente perigosos porque, uma vez ociosos, podem acabar entrando nas
estatísticas da delinqüência juvenil.
O número de crianças é elevado e muito superior ao que se via anos atrás.
Faz parte do segundo ciclo da migração de dekasseguis. No início, a partir
de 1990, quando o governo japonês flexibilizou a lei que permitia a
contratação de estrangeiros descendentes de japoneses, a maioria era formada
por pais que deixavam a família para trabalhar poucos anos no Japão e
retornar ao Brasil. As crises econômicas, aqui e lá, criaram constantes idas
e vindas. O tempo de permanência aumentou e agora migram famílias inteiras.
O pequeno agricultor Mario Watanabe, de 26 anos, é um exemplo. A primeira
partida foi em 1993, quando Watanabe ficou três anos no Japão. Voltou ao
Brasil e viajou para o Oriente mais duas vezes. Em 1999, levou a mulher
Sonilda Alves da Silva, de 33 anos. Durante um ano e meio, os dois
economizaram e, na volta, investiram R$ 15 mil para montar uma loja de
roupas em Birigüi, interior paulista. Dinheiro perdido. No dia 16 de maio,
viajaram para o Japão, só que, desta vez, levando o filho Danilo Hideki, de
7 anos. “A gente trouxe ele já para ficar mais tempo”, explicou Sonilda. “Se
ficarmos sete anos empregados, valerá a pena”, completou Watanabe.
Separação – A família Yanai acaba de se separar. Kenji e Mariko voltaram
para o Brasil no mês passado, deixando no Oriente os filhos Toni Keiti, de
23 anos, e Shirlei Leico, de 21 anos. A vida de dekasseguis começou quando o
pai migrou, em 1989. Hoje, aos 55 anos, ele espera viver com a mulher uma
vida “sossegada” em Bauru. Toni e Shirlei, que vivem no Japão desde 1992,
devem permanecer em Ishikawa por mais alguns anos. Ele pretende aprender a
fazer sushis. Ela ficou por solidariedade. “Se meu irmão ficasse sozinho,
não ia conseguir se concentrar nos estudos”, disse. “Já que estou aqui,
tendo a oportunidade de aprender, por que não?”, indagou Toni.
O pensamento do jovem é raro. O trabalho dos dekasseguis, na maioria das
vezes, é mecânico, como o de soldar peças numa linha de produção. Eles
passam anos fazendo o mesmo tipo de serviço, que lhes dá pouca qualificação.
Não procuram se atualizar.
É por isso que muitos voltam ao Brasil com a chamada “síndrome do regresso”,
como identificou o psiquiatra Nakagawa. São cinco pontos cruciais que marcam
a readaptação de um dekassegui: distanciamento afetivo dos parentes e
amigos; desorganização do modo de vida; constante comparação entre os dois
países; tendência de se anular profissionalmente; sem perspectiva, retornar
para o Japão.
“O problema é que, quando se vai para o Japão, não dá mais para voltar para
o Brasil e ganhar R$ 300 por mês”, afirma Sonilda, que em Birigüi ganhava R$
400 numa fábrica de calçados. As comparações são, de fato, desproporcionais.
Um homem ganha, em média, 1.200 ienes (quase R$ 30) por hora e uma mulher,
1.000 ienes. Num mês, os dekasseguis ganham entre R$ 5.000 e R$ 7.500,
somando horas extras. Com esse salário, podem entrar numa loja de
eletroeletrônicos e levar um computador para casa fazendo uma conta simples:
com seis dias de trabalho, o equipamento estará pago.
“No fundo, esse movimento de vaivém se transforma num nó na cabeça deles.
Vão ao Brasil e só pensam em voltar. Chegam no Japão e só querem retornar
para o Brasil”, analisou a secretária-geral do consulado brasileiro em
Tóquio, Carmem Bozzi.
É um problema que só tende a crescer. A comunidade brasileira no Japão já é
composta de 265.962 pessoas, segundo dados divulgados no mês passado pelo
Ministério da Justiça japonês. É quase cinco vezes mais que o número de
dekasseguis que migrou dez anos atrás. Agora, com o fim da Copa, esse
contigente voltou ao status de brasileiros sem pátria e sem chuteiras.

Brasileiros contam histórias de discriminação
TÓQUIO – O 12 de outubro é dia da Padroeira do Brasil e um marco na história
da comunidade brasileira no Japão. Nessa data de 1999, a jornalista Ana
Bortz ganhou um processo contra o dono de uma pequena joalheira de Hamamatsu
que a havia expulsado da loja ao descobrir sua nacionalidade. Ciente de seus
direitos, batalhou na Justiça uma indenização e recebeu US$ 14 mil mais uma
carta com pedidos de desculpa. “Com o meu processo, foi aberto um precedente
jurídico que permite aos estrangeiros pedirem ações por discriminação”,
afirmou Ana, que já foi operária no país.
É difícil encontrar um dekassegui que não tenha sido vítima de preconceito
no Japão. A condição de trabalhar em atividades que os japoneses consideram
sujas, perigosas ou pesadas torna os brasileiros cidadãos de segunda
categoria. Até o modo de se vestir, andar ou falar acaba sendo visto de
forma negativa. Pouco antes do resultado, Ana encontrou um bar com a
seguinte placa: “Proibidos brasileiros e peruanos”, em português. Depois de
sua vitória, a placa foi substituída.
Após o processo jurídico de Ana, muitas empresas mudaram o tratamento dos
brasileiros. A distinção até pode existir, ainda que velada, mas nunca
evidente.
Alguns anos atrás, Cristiane Ishiyama, de 27 anos, passeava num shopping
com sua prima quando ouviu de japoneses a expressão “garotas de programa”.
Estavam se referindo a elas. “Saímos da loja sem graça”, disse Cristiane,
mãe de um menino de 2 anos e operária de uma fábrica.
A matogrossense Claudilene Watanabe, de 21 anos, está há um ano e meio no
Japão. Em Campo Grande, estudava e trabalhava de balconista, cujo salário
era de R$ 150. Quando ficou grávida, percebeu que não tinha condição de
cuidar do filho. Com parentes dekasseguis, decidiu seguir o mesmo destino,
deixando o filho no Brasil. No Japão, já sofreu assédio até da máfia
japonesa, a Yakuza, que lhe ofereceu dinheiro para posar para revistas
masculinas ou participar de um filme adulto. Nunca aceitou a oferta.
Ela e sua prima Vânia trabalham juntas na mesma fábrica. Vânia confessa que
já teve depressão por estar longe de casa e dos filhos. “Aqui é o lugar
onde o filho chora e a mãe não vê.” No começo, ela sofreu um drama comum a
muitos dekasseguis. Para trabalhar, teve de assumir uma dívida de 320 mil
ienes (R$ 8.000) a serem quitados em seis meses. Para garantir o pagamento,
a empreiteira reteve seu passaporte, ainda que o ato seja ilegal.
“O problema das empreiteiras é que muitas não são idôneas”, afirmou o
cônsul-geral brasileiro em Tóquio, Marcos Duprat. Essas empresas, a maioria
de origem japonesa, fazem a contratação da mão-de-obra brasileira. Embora
ilegais no país, existem como forma de burlar o pagamento dos direitos
trabalhistas. As empresas garantem a força de trabalho, mas não precisam
arcar com as despesas normais de um trabalhador.
Pior situação vivem cerca de 200 brasileiros presos no Japão. Eles cometeram
crimes que variam de um simples furto a um homicídio qualificado. A maioria
deles não tem condição de pagar um advogado e recorrem à defensoria
pública. Como não falam com fluência o japonês, são prejudicados.
O vice-cônsul Ibes Costa tem a tarefa de visitar os dekasseguis presos em
Tóquio. É um dos raros contatos dos brasileiros, com exceção de seus
parentes. E é também o único momento em que podem falar em português. “”O
sistema penitenciário é muito diferente do brasileiro e antiquado” explicou
Costa. Ainda que pareça estranho, indagação mais comum que o vice-cônsul
recebe é: “Posso ficar no Japão?”

Rede de serviços ajuda a matar saudades da casa
TÓQUIO – O Japão de hoje está mais verde-e-amarelo e a explicação para isso
não é a seleção brasileira. Uma rede de serviços criada pela comunidade de
dekasseguis tem modificado a realidade que os novos migrantes encontram ao
desembarcar no outro lado do mundo. Se antes um brasileiro tinha de se
adaptar totalmente ao estilo oriental, agora ele pode viver como se
estivesse no Brasil, com direito a feijoada, pagode e Domingão do Faustão.
Essa gama de serviços acaba criando uma espécie de “rede de proteção” para
os dekasseguis. Quer levar os filhos na escola? Há instituições que ensinam
o bê-á-bá em português. E para comprar um produto eletrônico? Lojas de
brasileiros dão todas as dicas sobre os mais novos lançamentos. Comida?
Dezenas de açougues, supermercados e lojinhas de produtos do Brasil estão
espalhadas em diversas cidades. Saudade de uma boa novela ou de ver um
Palmeiras x Corinthians? Há fitas de vídeo para todos os gostos.
Essa rede de proteção inclui ainda dois jornais semanais e uma emissora de
TV para a comunidade dekassegui. A IPC retransmite os programas da TV Globo,
alguns ao vivo e outros com a diferença de 12 horas do fuso. Por R$ 3
diários, menos que o preço de um cafezinho no Japão, o trabalhador paga a
assinatura dessa emissora. Há ainda diversas agências de bancos brasileiros,
especializadas no envio de dinheiro dos dekasseguis para os parentes no
Brasil.
O ex-feirante Jorge Matoba, de 60 anos, afirma que foi com a intenção de
ficar três meses, mas agora já conta 11 anos de Japão. Ele é dono do PitStop
Grill, um empreendimento que inclui churrascaria, supermercado, padaria,
açougue e butique. De cada dez clientes, três são japoneses. Matoba seguiu
os mesmos passos que outros empreendedores que criaram negócios para a
comunidade brasileira. A demanda só tende a crescer.
Em todo o Japão, conta-se mais de 40 escolas de ensinos fundamental e médio
voltadas para a comunidade brasileira. Todas são particulares e algumas
homologadas pelo Ministério da Educação (MEC). Os dekasseguis também podem
freqüentar as escolas públicas japonesas. Mas a dificuldade da língua e o
sonho de retornar ao Brasil acabam fazendo com que poucos pais matriculem
seus filhos nessas escolas.
Até mesmo para obter carteira de motorista há facilidades. Os carros
japoneses possuem a chamada “mão inglesa”, porque a direção fica no lado do
passageiro se fosse no Brasil. Mas como é relativamente fácil comprar um
carro no Japão – um usado custa a partir de R$ 3 mil – cerca de 5 mil
brasileiros já têm um. Para facilitar a vida deles, a Japan Automobile
Federation publica um manual em português com as regras de trânsito, que
devem ser decoradas para o exame escrito.

Família Granado viajou preparada para ‘humilhação’
TÓQUIO – Quando a família Granado mudou-se para Hamamatsu, no Japão, em
fevereiro do ano passado, sabia o que teria de enfrentar. “Já viemos
preparados para a humilhação, muito trabalho e discriminação”, afirmou Luis
Antonio Santana Granado, de 39 anos. Ele, sua mulher e dois filhos
encontraram tudo isso e um pouco mais. “Qualidade de vida, tirando o
dinheiro, não dá para ter.”
Elaine Naomi Kuroda, de 38 anos, operária da Suzuki, tem uma jornada de
trabalho que varia do diurno para o noturno. Quando trabalha à noite, mal vê
o filho Luciano, que já freqüenta uma escola pública japonesa. O outro
filho, Leandro, voltou ao Brasil logo nos primeiros meses. Queria ver o
filho que tinha acabado de nascer.
Em Joanópolis, interior paulista, os Granados possuíam uma pequena
propriedade rural, onde produziam leite. Mas a renda não era suficiente e
eles decidiram se mudar para o Japão. Trocaram uma casa de 5 quartos por um
apartamento de 45 metros quadrados. Tem um estilo japonês, com tatames na
sala e ofurô no banheiro, mas o modo de vida é mesmo brasileiro.
Nem Elaine nem Granado sabiam falar japonês. Hoje, a cada nova palavra que
aprendem, ensinam um ao outro. Luciano entrou numa escola japonesa, embora
na cidade haja uma outra com ensino em português, porque os pais queriam que
ele aprendesse algo novo. O prazo inicial era de três anos no Japão, mas
hoje já sabem que esse prazo é muito pequeno para economizar. “A realidade é
muito diferente do que se ouve falar. O primeiro ano é só adaptação”,
afirmou Granado.
Ele trabalha em dois empregos: numa fábrica de peças para banheiro e numa
imobiliária. No último mês, trabalhou 27 dias e fez 63 horas extras. Para
facilitar sua locomoção, Granado comprou um carro usado por 130 mil ienes.
Por mês, o casal paga 5 mil ienes de estacionamento e outros 56 mil só de
aluguel do apartamento. Atualmente, com o salário de Elaine, conseguem
cobrir as despesas fixas. O que Granado ganha vai para uma poupança.
No prédio em que vivem, há mais brasileiros, o que ajuda a afastar um pouco
a saudade. No começo, eram ignorados pelos japoneses, mas alguns vizinhos já
começam a cumprimentá-los. Com essa integração, ainda que lenta, a volta ao
Brasil já não tem data. “Estamos deixando correr, não planejamos nada”,
disse Elaine.

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