Publicada em 3 de janeiro de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
BRASÍLIA – Até que nem tanto esotérico assim, mas se o cantor e compositor
Gilberto Gil quis ser “algo incompreensível”, ontem, ele conseguiu. Na
cerimônia de transmissão de cargo de ministro da Cultura, ele esbanjou no
discurso expressões inusitadas e alguns neologismos, deixando a platéia com
vários pontos de interrogação na cabeça. Numa cerimônia em que o formalismo
foi deixado de lado, Gil foi prestigiado por representantes da classe
artística, políticos e populares. O auditório de 91 lugares ficou pequeno e
abafado para os interessados em ver um dos maiores nomes da música popular
brasileira assumir um ministério.
O cantor falou sobre a importância da eleição de Lula, enfatizando que o
Ministério da Cultura deve ser parte integrante do desejo de mudança
expresso pela população. “A política cultural deste ministério, a política
cultural do governo Lula, a partir deste momento, deste instante, passa a
ser vista como parte do projeto geral de construção de uma nova hegemonia em
nosso País”, disse. Criticando a violência e a desigualdade social, disse
que a área cultural pode ajudar na superação dos desníveis da sociedade.
Em outro momento, ressaltou que a atual política de leis de incentivo
fiscal, como a Rouanet, não são suficientes para atender às demandas da
área. “É claro que as leis e os mecanismos de incentivos fiscais são da
maior importância. Mas o mercado não é tudo”, disse, sendo interrompido sob
aplaudos. No total, foi aplaudido sete vezes. Gil não apresentou, nem no
discurso, nem na entrevista, propostas concretas para o ministério. Afirmou
que primeiro está se inteirando da situação.
A cerimônia foi marcada por situações cômicas e saia-justa. Em alguns
momentos do discurso de Gil, a platéia fazia caretas. O que ele quis dizer
com expressões como “do-in antropológico”, “primitivos contemporâneos”,
“estandartes bélicos”, “semiodiversidade”, “ouriçam planetariamente” ou
“transculturativas” poucos souberam dizer. Mas o dia era de festa.
Até o ex-ministro Francisco Weffort entrou no clima. No meio de seu discurso
de despedida, feito de improviso, parou para saudar a chegada da atriz
Patrícia Pillar, acompanhada do marido e ministro da Integração Nacional,
Ciro Gomes. “Não há eloqüência que se sustente nessas circunstâncias. Senta
aqui”, brincou, arrancando risos. Sociólogo da Universidade de São Paulo,
ele e Pedro Malan foram os únicos a participar dos dois governos de Fernando
Henrique Cardoso.
Weffort falou sobre a consolidação da democracia no País e o fato de a pasta
ter sobrevivido nos últimos oito anos, apesar dos recursos escassos, sem
sofrer ameaças. “O Ministério da Cultura está inteiro, consolidado. O
sentido disso é que antes não estava”, disse. Lembrou ainda que, antes dele,
houve nove ministros em nove anos. O ex-ministro afirmou que durante seu
mandato foram produzidos 23 mil projetos de ação cultural.
Incidente – Já no fim, um incidente que quase estragou a festa. Um morador
de rua do Recife, Francisco de Assis Alves, de 34 anos, tentou se aproximar
de Gil e foi impedido por parentes do cantor. Ele se identificou como seu
filho bastardo. Foi logo isolado numa sala. Após a entrevista, Gil saiu por
outra passagem. “Perguntem a ele, apurem”, disse. Uma das filhas de Gil
afirmou que Alves já tentou um contato com a família, que o cantor se
prontificou a fazer exame de DNA, mas depois nunca mais se teve notícia dele.
A cerimônia contou a participação de atores que coordenaram o programa do PT
para a área cultural e podem integrar a equipe de Gil, como Antônio Grassi
(convidado para presidir a Funarte), Sergio Mamberti (secretaria de artes
cênicas) e Márcio Meira (patrimônio histórico).
Depois do evento, eles se reuniriam com Gil para definir os últimos acertos.
Para a secretaria-executiva, foi convidado o presidente do PV baiano, Juca
Ferreira. Estiveram presentes ainda o secretário-geral da Presidência, Luiz
Dulci, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), o ex-senador baiano Antonio Carlos
Magalhães, os deputados João Paulo Cunha (PT-SP) e Fernando Gabeira (PV-RJ),
e o publicitário Duda Mendonça.
Privacidade total para os filhos do presidente
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a primeira-dama, Marisa
Letícia, conseguiram criar uma blindagem quase intransponível para os seus
filhos. Depois de dezenas de cerimônias públicas, alvo das atenções das
imprensas brasileira e mundial, fotografado milhões de vezes nas últimas
semanas, o casal foi o foco exclusivo das atenções, preservando os
primeiros-filhos da República. A estratégia foi isolá-los do olhar dos
jornalistas, ainda que tivessem estado presentes na maioria dos eventos da
posse presidencial.
“Chegamos à conclusão de que temos de preservar a privacidade. Nada como ser
anônimos”, resumiu ontem a filha do primeiro casamento de Lula, Lurian,
assessora de imprensa do PT de Blumenau. Por sua militância política, ela
ainda aparece em eventos públicos, nas poucas vezes em que está ao lado
dele. Ela, Marcos (do primeiro casamento de Marisa e adotado pelo
presidente), de 31 anos, Fábio Luiz, de 28, Sandro Luiz, de 23, e Luiz
Cláudio, de 17, puderam ser vistos em uma galeria reservada do Congresso. No
Palácio do Planalto, ficaram nas partes internas. Mas em nenhuma das duas
ocasiões posaram para fotos ao lado do pai-presidente.
A estratégia de preservar os filhos é antiga. Marisa Letícia também era
pouco vista ao lado do marido. Nas campanhas de 1989, 1994 e 1998, ainda com
visual diferente do atual, remodelado com um novo figurino, uma cirurgia
plástica nos olhos e um corte de cabelo com grife de Wanderley Nunes, a
mulher de Lula fazia questão de ficar mais escondida. Raramente subia nos
palanques ou participava de eventos políticos. Só na campanha do ano passado
é que ela apareceu, por recomendação do publicitário Duda Mendonça.
Os filhos e os três netos do casal, por sua vez, não foram vistos na
campanha. Desde que foi eleito, eles passaram a andar em São Bernardo do
Campo com escolta da Polícia Federal. Lurian nunca viveu com o pai, mas os
outros filhos tinham uma relação mais próxima. Nenhum deles, contudo, vai
morar em Brasília. Os três filhos mais novos do casal permanecerão no
apartamento do ABC paulista. Apesar de serem filhos de Lula, eles nunca
usaram o fato para se auto-promover.
Festa – Lurian, que admitiu não ter ficado muito à vontade anteontem, disse
que “todo cuidado é pouco” para evitar a exposição dela, da família e dos
irmãos. “Estava muito tumultuado, mas é lógico que a gente queria participar
mais da festa”, disse. Segundo ela, a decisão de preservarem a vida privada
tem um motivo simples. “Nenhum de nós é personalidade. Somos pessoas comuns,
com vidas comuns, que não têm nada a ver com a Presidência.”
Dois netos de Lula compareceram às cerimônias: Maria Beatriz, filha de
Lurian, e Thiago, filho de Márcio. O menino Ashtar Alexandre, filho de
Sandro, ainda muito novo, não participou.