Nelson Pereira filma cem dias do governo Lula

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Publicada em 7 de janeiro de 2003
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
BRASÍLIA – Se perguntarem a Nelson Pereira dos Santos qual foi a cena que
mais o deixou impressionado em 1.º de janeiro, na posse do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, ele dará a seguinte e emblemática resposta: “Quando vi
aquele respeito que a polícia começou a ter pelo povo, pensei, ‘ah, agora
acabou a ditadura’. A ditadura terminou naquele dia.” E o que isso
significa? “Está instaurado o respeito pelo mais pobre, pelo oprimido.
Estamos colocando como prioridade as necessidades dessa grande massa de
população.” O maior cineasta vivo do País fala com empolgação de seu novo
projeto.
Nos próximos três meses, ele estará atrás das câmeras, filmando os cem
primeiros dias do governo Lula. Convidado há três semanas, Nelson Pereira
dos Santos teve de interromper a finalização de seu filme sobre Sérgio
Buarque de Holanda, para seguir os passos do novo presidente.
Viu no fato, aliás, uma feliz coincidência: “Ele foi fundador do PT e as
idéias dele, especialmente do último capítulo de Raízes do Brasil, são
proféticas dessa grande mudança da sociedade brasileira.” Ao seu lado,
Nelson Pereira terá o diretor de Fotografia Edgar Moura e Juarez Dagoberto
no som. Considera sua equipe excelente. Com Dagoberto já trabalhou em
Jubiabá e Cinema de Lágrimas. Poderá, assim, ter a paz e a cumplicidade para
criar em cima da história de como um ex-retirante e ex-torneiro mecânico
governará o Brasil. Eleitor de Lula na última eleição – e de Fernando
Henrique Cardoso em 1994 –, o cineasta alterna otimismo e realismo para
falar de suas expectativas com o início do novo governo.
“Imagino que haverá duas grandes questões: a luta contra a fome e o fim da
corrupção administrativa. Mas as transformações não acontecem de um dia para
o outro nem por decreto”, afirmou ao Estado na última sexta-feira. No dia,
preparava-se para uma entrevista com o ministro das Relações Exteriores,
Celso Amorim. O documentário mesclará o dia-a-dia da política palaciana com
depoimentos de artistas, comentaristas e populares. Não há um roteiro
definido, o que não é novidade para a sua vasta filmografia. Em Fome de
Amor, um filme de ficção de 1968, Nelson Pereira já havia deixado de lado o
roteiro.
A produção dessa obra, ainda sem título, deverá ser dividida entre o Estúdio
Millennium, de Brasília, e uma produtora francesa. A concepção de filmar os
cem primeiros dias foi da parte francesa, mas os convites a Nelson Pereira,
Moura e Dagoberto foram feitos por Christian de Castro, da Millennium e
sócio da BSB Cinema Produções. Os nomes franceses não são divulgados porque
as negociações estão em curso.
Castro adianta que estão próximos de fechar um contrato de exibição com uma
TV francesa. No Brasil, ainda se estuda se o público verá a obra no cinema
ou por meio de uma emissora de TV. Não se fala, em público, do orçamento do
documentário.
Aos 74 anos, o cineasta preocupa-se em não deixar passar as melhores imagens
e momentos do início de governo. Privilégios, já sabe que não terá, por
ordem do comando petista de comunicação. Nos primeiros dias, trabalhou como
se fosse uma equipe comum de jornalismo de TV. No dia 1.º, esperou horas de
pé até que Lula subisse a rampa do Palácio do Planalto. Nelson Pereira não
reclama, considera essa pouca consideração à sua história cinematográfica
parte do seu objeto de trabalho. “Todo mundo tem os mesmos direitos.”
Prefere se entusiasmar com a atividade dos jornalistas, ávidos por notícias
diárias do novo governo.
“Vou acabar transformando os jornalistas em personagens. Eu me divirto muito
com os fotógrafos. É incrível como eles mergulham até debaixo de um cavalo
para pegar as melhores poses”, disse. O mais novo “repórter” a captar os
bastidores da República, Nelson Pereira pretende seguir Lula em momentos que
considerar relevantes para a mudança que vê acontecer no País. A viagem do
presidente e sua equipe ministerial para municípios miseráveis do sertão
nordestino está nos planos. “Esse será um momento muito importante,
completamente novo de toda a história política brasileira, da administração
pública.” É claro que ele não vai dar plantão no Palácio do Planalto. Estará
lá sempre que julgar importante. Imagens de TV podem vir a ser utilizadas.
Autor de obras-primas do cinema, como Rio, 40 Graus e Vidas Secas, Nelson
Pereira sempre imprimiu um olhar crítico e diferenciado sobre a realidade
desigual dos brasileiros. Sua história pessoal, de ex-militante do Partido
Comunista e egresso do politizado Colégio do Estado Presidente Roosevelt, de
São Paulo, o mesmo por onde passou o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, poderia explicar um pouco do entusiasmo com o novo projeto. Mas ele
dá outra resposta: “Lula lembra muito o meu pai, Antônio. Ele era um caboclo
do interior de São Paulo, Lula é um homem que veio do campo. Meu pai tinha
muita energia para viver e superar as dificuldades”, afirmou, interrompendo
a entrevista por alguns instantes.
Seu Antônio era anticomunista, mas tinha uma prática mais socialista,
explica o filho. Líder da Associação dos Alfaiates do Estado de São Paulo,
defendia o interesse dos companheiros. “Fico lembrando do meu pai jovem, com
muita disposição, vontade de acertar, aberto e amigo de todo mundo. Sempre
muito interessado pelos destinos do País.”
Para Nelson Pereira, Lula tem o grande poder de fazer com que cada
brasileiro se identifique a ele, cada qual à sua maneira. “O que eu espero,
não estou esperando sozinho, estou esperando com milhões de pessoas, é a
mudança, a transformação.” Ainda com as imagens da posse vivas em sua
memória, o cineasta disse que só o dia da morte de Getúlio Vargas pode ser
comparável ao que aconteceu dessa vez em Brasília.
“Parecida, mas em outro extremo, o da pena, o do choro. A multidão chorando,
acompanhando um momento de profunda mágoa, tristeza. Aqui foi o contrário.”
Das diversas imagens que ele gravou, com outras duas equipes, no dia da
posse, Nelson Pereira faz piada particularmente com uma.
Simbolicamente ela traduziu o fim da ditadura, mas também um marco da nova
história brasileira. “O pessoal lá de Ramos, da zona norte do Rio, ficou com
inveja dos brasilienses, porque esse piscinão (o espelho d’água do
Congresso) é muito melhor. Embora pequeno, é um piscinão democrático”,
brincou.

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