Publicada em 24 de março de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Aos olhos da lei, eles são fugitivos. Estavam cumprindo medida de
internação, quando a oportunidade da fuga surgiu. Não pensaram duas vezes.
Entre a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) e uma vida de
esconde-esconde, cheia de incertezas e o pavor de voltar para dentro dos
muros da instituição, optaram pela segunda.
Neste ano, 115 adolescentes já foram recapturados, mas outros 85 estão
foragidos. A reportagem do Estado entrevistou três desses ex-internos.
Soltos, só sabem falar mal dos dias que passaram lá dentro. Não são
otimistas com o próprio futuro. Os três estavam em Franco da Rocha, que tem
registrado o maior número de rebeliões neste ano – foram 28 desde janeiro.
Saíram há poucos dias das unidades e agora estão a quilômetros de distância
do complexo.
Pela Justiça, deveriam estar cumprindo medida de internação. Na gíria deles,
estavam “pagando” o Artigo 157, o crime de roubo no Código Penal. Nas fugas,
a maioria se aproveitou de um momento de rebelião ou de um “vacilo” dos
funcionários. No domingo da semana passada, dia 16, os internos da unidade
21 recebiam as visitas das mães. De repente, iniciou-se uma confusão e o
portão da unidade 29 foi aberto. Lá dentro, internos assistiam com
empolgação ao segundo tempo da primeira partida da final do Campeonato
Paulista.
Não deu tempo para ver o fim do jogo. “O portão se abriu e vi minha
liberdade. Na hora, não pensei em nada, só no tempo que estava lá dentro, um
ano e 11 meses”, afirmou Kelvin, de 18 anos. (Seu nome, como os dos outros
dois fugitivos, foi trocado. ) Os rebelados dominaram o vigilante do portão
principal, pularam a tela do complexo e caíram na mata. No meio da fuga,
ouviram sirenes da polícia e o barulho de um helicóptero.
Alguns se entregaram, outros se esconderam. Kelvin esperou até meia-noite
para voltar a fugir. Chegou ao Hospital do Juqueri com o dia clareando. “Na
mata, soube com os caras da 21 que era só para fazer um auê (confusão).
Estava tudo acertado.
Motins – A reivindicação devia ser para eles e para os funcionários. Só que
os menores não cumpriram o trato e decidiram fugir. Joelson, de 19 anos,
abandonou a unidade 29 no mesmo dia. “Fugi para não morrer”, afirmou.
Ao ver a maioria dos adolescentes saindo pelo portão, ele sabia que era
preferível arriscar seu futuro. Faltava um ano para cumprir sua medida de
internação. Lembrou imediatamente de outra rebelião, quando apanhou dos
monitores por não querer participar do tumulto. Desmaiou ao receber uma
paulada na cabeça. “Fiquei com medo. Não queria ficar para tomar mais
madeirada, ferrada”, disse.
Outra lembrança que tem é do dia em que recebeu dos monitores as chaves dos
módulos e dos portões. “É com vocês”, ouviu. Era a senha para liberar os
infratores e começar um novo motim. Cléber, de 16 anos, fugiu da unidade 25
de Franco da Rocha no fim de fevereiro. Na véspera da fuga, os internos
haviam se rebelado e passaram a madrugada prontos para nova confusão.
Funcionários terceirizados foram chamados para substituir lâmpadas quebradas
da muralha.
Um grupo de infratores já chegou intimando: “Dá a escada, dá a escada.”
Segundo Cléber, não havia funcionários da Febem por perto. “A maioria da
Casa foi embora. Eram uns 30, 35. Lá não tinha mais condição de ficar, não.
Era rebelião atrás de outra, funcionário espancando os menores, um com cabo
de enxada, e esculacho de monte.”O motivo da rebelião que propiciou a fuga
de Cléber era um acerto de contas entre os internos. “Os malucos queriam
pegar um fuça, um moleque que disse que tinha faca na Casa. Tinha mesmo,
umas 15 facas, feitas com as grades. Íamos pegar o moleque, dar um trem
(surra) nele. Os funcionários não deixaram, entraram na frente, trancaram um
outro moleque dentro do banheiro e saíram.” O motim teve início.
Segundo ele, o diretor do complexo chegou a negociar com os rebelados,
prometendo melhorar as condições da unidade e permitindo a entrada de roupas
e sapatos. Só que a fuga veio antes.
Marcas – Kelvin, 1,73 metro de altura e 74 quilos, sente revolta da Febem,
um lugar onde os jovens entram “santos e saem para fazer e acontecer” ou
onde “a maioria que veio para a rua está na cadeia ou já morreu”. Foi
internado porque roubou um carro, com um amigo, já morto. Tinham uma arma de
plástico.
Durante a internação, foi levado para fazer um laudo psiquiátrico.
Revoltou-se ainda mais quando descobriu o resultado: “O médico previu meu
futuro. Disse que ia sair da Febem, arrumar mulher, fazer filhos, fumar
maconha, crack, cheirar farinha (cocaína) e terminar numa penintenciária. E
se ninguém quisesse ficar com meus filhos, eles iam crescer num
reformatório.” No dia do exame, contou Kelvin, o médico apenas lhe disse
“boa sorte”.
Joelson, 1,76 metro e 70 quilos, acabou se cortando após fugir no meio da
mata e ficou com o corpo coberto de lama. Cumpria pela segunda vez uma
medida de internação. Na primeira vez, foi preso num roubo a banco. Na
segunda, virou cúmplice de um assalto a um mercado. Ele e um amigo entraram
desarmados, mas na saída foram flagrados pela polícia. Os dois tentaram
subornar os policiais, combinando entregarem maconha a eles. Acabaram presos.
Já Cléber, 1,58 metro e 50 quilos, tem duas passagens pela Febem, ambas pelo
Artigo 157. Na primeira, roubou com um amigo um estacionamento. Ficou sete
meses numa unidade da Raposo Tavares. Na segunda, ele, outro menor e três
adultos roubaram uma mansão na região do Morumbi. Estava com um revólver,
mas sua função era a de motorista. A dona da casa ficou apavorada e chorava
muito, lembrou. Ele queria dinheiro para comprar uma moto, já que não podia
pedir à mãe, pobre. Foi preso em flagrante. Foragido, afirma que pretende
arrumar um emprego e voltar à escola para tentar convencer um juiz a lhe dar
liberdade assistida.
Funcionários – O fugitivo Cléber sente raiva dos monitores da Febem, que
lembra pelos nomes ou apelidos de Fábio, Butininha, Clodoaldo e Cabo de
Enxada. Se encontrasse algum deles na rua, diz, só pensaria em vingança.
“Tanta coisa na hora para fazer. Ia matar eles.” O ódio, segundo o rapaz, é
uma lembrança do que fizeram a ele em várias ocasiões e em especial no
Natal. “Nesse dia, olhei no robocop (porta do quarto com um visor de vidro),
eles me tiraram do ‘barraco’ e me bateram. Falaram que eu estava caçando
assunto.” Seus colegas se revoltaram e todos acabaram apanhando. A rotina
dos internos, segundo contam os fugitivos, se resumia a assistir aula pela
manhã, voltar para a unidade, almoçar, fumar um cigarro e se recolher no
quarto. Apenas conversavam. À noite, jantavam e tinham direito de fumar mais
uma vez.
Banhos eram tomados em revezamento, no período da tarde. Certa vez, na
unidade 29, um garoto que alegava estar com pneumonia pediu para não fazer a
formação habitual. Tentava evitar a friagem. Recebeu de um monitor dois
tapas nas costas. Os infratores tentaram revidar. Logo, um grupo de
funcionários partiu para o ataque, afirmou Kelvin. Um dos agredidos teve
autorização para sair em liberdade no dia seguinte.
Segundo o jovem, um diretor disse que, se a vítima das agressões fizesse
boletim de ocorrência do episódio da véspera, jogaria toda a culpa do
tumulto nele.
A Assessoria de Imprensa da Febem informou que a fundação vem recebendo
denúncias, não só de internos como de pais e funcionários, mas a proposta do
presidente Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, que assumiu o cargo em 9 de
janeiro, é abrir o diálogo. E, para cada irregularidade tem sido instaurada
sindicância. Desde janeiro, 33 funcionários acusados de facilitar fugas,
omissão e participação em rebeliões foram demitidos por justa causa.