Publicada em 30 de março de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Foi preciso que dois juízes morressem brutalmente assassinados para que o
Judiciário percebesse que está vulnerável. Hoje, mais de 50 magistrados
brasileiros vivem ameaçados ou sob proteção policial. Temem por suas vidas.
E suas famílias também. Na segunda-feira, ainda pela manhã, o juiz de Mutum
(MG) Mauro Lucas da Silva soube do assassinato de seu colega de profissão
Alexandre Martins de Castro Filho. “Foi terrível. Chorei. Foi como se
tivessem arrancado um pedaço de mim.”
No mesmo dia, Lucas da Silva recebeu um segundo golpe: descobriu que um
grupo de criminosos estava pronto para matá-lo. Por sorte, uma denúncia
anônima o alertou. “Quando entrei na magistratura já sabia que podia estar
sujeito a esse tipo de coisa e de maneira nenhuma vou me intimidar. Mas não
posso deixar de reconhecer que minha vida virou um inferno.”
É a segunda vez em menos de um ano que o juiz Lucas da Silva passa a
conviver com escolta policial. Em abril de 2002, quando atuava na Vara de
Execuções Criminais em Governador Valadares, foi descoberto um plano para
seqüestrar um de seus filhos, então com 2 anos. Motoqueiros passaram a
rondar sua casa. Aos 43 anos e quase 5 de magistratura, ele atribui as
ameaças a grupos de criminosos que condenou, sobretudo traficantes.
Rigoroso, o juiz chegou a levar para a prisão uma delegada de polícia.
Alguns dos traficantes atuavam em outros Estados.
Na semana passada, em sessões nos Tribunais de Justiça, nas reuniões
extraordinárias e nos encontros fechados por todo o País, a discussão foi
uma só: como garantir a segurança de quem deve fazer cumprir a lei. Entre
atônitos e indignados, os magistrados notaram que em cada Estado o problema
se repete, enquanto o crime organizado avança.
Notificações – O número de juízes ameaçados ou sob proteção policial no País
foi obtido com base nos dados de associações de magistrados e Tribunais de
Justiça estaduais. É uma estimativa inferior à realidade. Muitos juízes de
comarcas menores pedem proteção diretamente à polícia local e não notificam
a instância superior.
Há uma semana, o juiz Alcides da Fonseca Neto, da Auditoria de Justiça
Militar do Rio, foi incluído na lista dos protegidos. Ele havia recebido uma
denúncia pelo celular: “Você está convidado para uma festa no céu.” Ouviu a
pessoa dizer ainda o nome de outros cinco juízes, também ameaçados de morte.
Ele, a mulher e a filha passaram a ser escoltados 24 horas. Professor de
direito penal, Fonseca Neto admite que as ameaças assustam. “Quem disser que
não tem medo, mente. Somos como qualquer outro profissional. O que não pode
existir é a paralisação por causa do medo.”
Responsável por julgar policiais militares, Fonseca Neto passa pelo mesmo
drama. Da primeira vez, em fevereiro do ano passado, uma ligação anônima de
um batalhão policial denunciou um plano para matá-lo: dois PMs iriam
rendê-lo e forjar um latrocínio. O juiz faz questão de dizer que só os maus
policiais estão sendo julgados, mas não deixa de criticá-los. “Aqui no Rio,
se seis juízes foram ameaçados ao mesmo tempo, cinco porque julgam tráfico
de droga e eu que julgo a PM, então essa é a prova incontestável de que há
muito policial ligado ao tráfico de drogas.”
Insegurança – No Brasil, existem quase 17 mil juízes. É um cargo
cobiçadíssimo e de grande status social, sobretudo em cidades menores.
Ganham, no início da carreira, cerca de R$ 5.500. Só que isso não se traduz
em proteção. Os fóruns de muitas comarcas estão longe de oferecer segurança.
Salas de audiência não possuem revista pessoal. A maioria dos Tribunais de
Justiça não tem detectores de metais. Os próprios magistrados davam, até
pouquíssimo tempo atrás, importância reduzida às denúncias dos colegas
ameaçados.
“Nenhum magistrado no Brasil e no mundo vai deixar de cumprir sua função,
mas também nenhum de nós quer virar nome de prédio, de biblioteca ou de
fórum”, desabafou o juiz Rommel de Araújo Oliveira, de 36 anos, da 2.ª Vara
Criminal de Macapá. Segundo ele, o Estado ainda não se sensibilizou de que
tem de dar garantias para que o magistrado tenha tranqüilidade e
estabilidade emocional para trabalhar.
No ano passado, Oliveira investigava elos do crime organizado no Amapá e
chegou a ser ameaçado por um policial civil. Ele e sua família passaram a
ter proteção. “Minha filha pequena perguntava por que aquele homem ia para
cima e para baixo com a gente. Eu não poderia dizer, jamais, que ele estava
fazendo a minha segurança porque queriam me matar.”
Magistrados pagam para ter escolta pessoal
Depois do assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, de Vila
Velha, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo recebeu uma avalanche de
pedidos de proteção. E solicitou que pelo menos 25 juízes que atuam em varas
criminais tenham segurança especial. O mesmo ocorreu em outros Estados. Só
que os governos federal e estaduais já informaram que não há policiais
militares em número suficiente para dar essa garantia. Em Mato Grosso,
muitos juízes estão tirando dinheiro do próprio bolso para pagar escoltas,
segundo a associação de magistrados.
No Ceará, o fenômeno se repete e alguns já pensam em tomar a mesma atitude.
“Não restam dúvidas de que o crime organizado atua no Estado, mas a
segurança particular custa caro”, afirmou o presidente da Associação
Cearense de Magistrados, Michel Pinheiro.
O presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Alemer Moulin,
decidiu contratar provisoriamente empresas privadas para proteger o prédio
do TJ. Ele pretende discutir a segurança dos juízes esta semana com o
governador Paulo Hartung (PSB). “Pelo menos os juízes criminais deveriam
receber proteção”, disse. “A resposta tem que ser dada pelo governo. O prazo
é para ontem.”
Moulin sugeriu que a Vara Especial da Central de Inquéritos da Comarca da
Capital funcione em regime de rodízio. Isso evitaria a concentração de casos
nas mãos de um número limitado de magistrados, que ficariam visados pelo
crime organizado, como Castro Filho. Segundo a presidente da Associação dos
Magistrados capixabas, Janete Vargas Simões, a 5.ª Vara, onde trabalhava o
magistrado morto, ganhará o reforço de três juízes.
O presidente da Associação dos Magistrados de Rondônia, José Jorge Ribeiro
da Luz, requisitou a proteção preventiva de oito juízes que atuam nas varas
de execuções penais. Mas três já foram ameaçados. Ele próprio, que atua na
Vara de Delitos de Tóxicos, recebeu ameaças nesta semana.
Em São Paulo, dois magistrados ameaçados se recusaram a dar entrevista com
medo de ficarem visados. Em Minas, 11 juízes informaram que estão sendo
ameaçados. De quarta para quinta-feira, houve quatro solicitações de
proteção. Os pedidos de justiça feitos por Cristina Escher, juíza e viúva do
juiz-corregedor Antônio José Machado Dias, e pelo advogado Alexandre Martins
de Castro, pai do magistrado assassinado no Espírito Santo, fizeram o
Judiciário acordar, mas as ameaças sempre existiram.
Tocaia – A juíza da Justiça Militar do Mato Grosso do Sul Marilza Lucia
Fortes, de 57 anos, sofreu a primeira ameaça há 7 anos e por 5 viveu sob
proteção. “O primeiro telefonema, nem você acredita. Fui trabalhar e só no
meio de uma audiência parei e refleti que havia sofrido uma ameaça.”
Marilza teve até animais de sua chácara envenenados. Certa vez, decidiu
viajar às escondidas. Poucos sabiam seu destino. Mas a caminho do aeroporto
uma Kombi se aproximou e um pistoleiro atirou em seu carro.
Juíza da comarca de Rio Branco do Sul, na região metropolitana de Curitiba,
Adriana Ayres Ferreira, de 36 anos, viveu 2002 sob ameaças. Foram
incontáveis ligações telefônicas. Recebeu proteção de um policial. Em
dezembro, ambos sofreram um atentado. Dois motoqueiros cruzaram o carro em
que estavam e um dos caronas apontou uma arma na direção de Adriana. O
segurança conseguiu desviar o carro. Em fevereiro, o policial que protegia a
filha da juíza descobriu que havia um veículo com placa fria controlando o
movimento de sua casa.
O caso explica parte do aumento da violência contra o Judiciário. Pela
mesa de Adriana, no início, passavam processos como mudança de nomes até
crimes de homicídio e roubo. Mas depois que a Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) do Narcotráfico apontou Rio Branco do Sul como uma das
sedes do crime organizado no Paraná, o poder público começou a atacá-la. “O
crime organizado e a criminalidade estão ficando cada vez mais ousados e
procurando nos intimidar, para que reine a impunidade.”
Na opinião do juiz Sérgio Franco de Oliveira Júnior, de 41 anos, é possível
que a morte dos dois magistrados esteja causando um efeito psicológico nos
criminosos, que passaram a se sentir mais estimulados para agir. Na
quarta-feira, foi descoberto um plano para matá-lo. Em fevereiro, foram
condenados a 23 anos de prisão quatro membros de uma quadrilha de roubo de
carga: Silvio Bezerra, Anderson Francisco Selerino, Carlos Roberto Macedo e
o investigador de polícia Adair Pereira Silva. Silva é o único que está
preso. Os demais fugiram e prometeram vingança ao juiz e ao promotor Paulo
Henrique Carneiro Barbosa.
“Acho que as condições estão cumpridas: houve a condenação e conseguiram
fugir. Estamos aqui apreensivos, porque pode acontecer qualquer coisa”,
disse. Casado e pai de três filhos, o juiz de São Gonçalo do Sapucaí (MG)
tem a coragem de dizer que não se intimida, mas vive um pesadelo. “É uma
sensação de que não vai terminar, que vai ser um tormento pelo resto da
vida.” E advertiu: “Se isso se tornar uma rotina, se a criminalidade não
tiver mais respeito, consideração às autoridades constituídas, achando que
matando vai se resolver, isso vai virar um caos, uma nova Colômbia, em
proporções muito maiores.”
‘Divulguem’ – O desembargador Marco Souto Maior, de 56 anos, angustiou-se
quando as ameaças passaram a se dirigir à mulher, aos filhos e aos netos. No
segundo semestre de 2001, quando era presidente do TJ da Paraíba e
desengavetou vários processos, conheceu a ousadia dos criminosos.
“Um pistoleiro queria me matar. Como estava difícil me pegar na rua,
planejou dar um tiro na minha cabeça no tribunal”, afirmou. “A grande
lição que dou aos outros juízes é que não se calem quando receberem ameaças.
Divulguem e atribuam responsabilidades a quem de direito for. Porque o
esforço individual para se precaver não será suficiente para combater uma
bandidagem organizada.” (Eduardo Nunomura e Felipe Werneck)