Publicada em 11 de maio de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Nos estúdios e corredores da TV Cultura, trabalha-se muito. Nos setores de
entretenimento, jornalismo ou operação, há funcionários dedicados lutando
para manter a programação no ar. Formam um exército de profissionais, em que
cada um assume o papel de guardião da TV pública. Operam máquinas, mas na
verdade fazem milagres. O telespectador reconhece esse esforço e faz dela o
maior símbolo de uma televisão de qualidade, digna de ser vista por
crianças, jovens e adultos a qualquer hora do dia. Se tudo isso é verdade,
por que a emissora está imersa numa profunda e melancólica crise? Porque tem
sido assim em 34 anos de vida.
Em fevereiro de 1972, o Estado já publicava: “Há muitas reclamações na
Fundação Padre Anchieta contra o processo de liberação de verbas. O
orçamento atual está aprovado, com um déficit de 4 milhões e sem condições
para investimentos. E cada vez que há um pedido de verba ao governo (duas a
três vezes por mês), é necessário um grande empenho pessoal do diretor
econômico, que já não consegue fazer o orçamento funcionar.” A primeira
crise ocorreu três anos após o início da operação da TV. Faltava, como falta
hoje, dinheiro.
Na quarta-feira, o telespectador do Jornal da Cultura soube da notícia, mas
não viu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva explicar os motivos de sua
escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal. O som estava inaudível.
As fitas de vídeo estão velhas e desgastadas. Produzem imagens distorcidas
(no jargão técnico, drop-out).
“É um problema que vem aumentando com o tempo. Nossa qualidade é analógica.
Estamos na vanguarda dos anos 80”, reconhece Nivaldo Freixeda, editor de
Qualidade da TV Cultura. Não há exagero. A emissora ainda possui câmeras de
válvulas adquiridas em 1986, que não são mais fabricadas. Dos 55 aparelhos,
45 foram comprados até 1994. Só há duas máquinas digitais.
Vergonha – Muitas câmeras apresentam defeito no visor. O que se vê nele é
diferente do que está sendo gravado. Para acertar o foco, a luz e as cores,
os funcionários operam intuitivamente. Como são aparelhos antigos,
necessitam de uma iluminação reforçada, a cruzeta ou luz de fogo. Quando
ligam a luz, atrapalham as gravações das outras emissoras. “É uma vergonha.
Só damos o máximo de nós por amor ao que fazemos”, diz o cinegrafista Leomi
Batista. Há duas semanas, Eliseu Ferreira, 26 anos como cinegrafista da
emissora, foi xingado enquanto gravava um concerto na Sala São Paulo.
Irritada, uma mulher armou um escândalo por causa do fone de ouvido da
câmera, que fazia muito barulho.
Hoje, é impossível ter todas as equipes trabalhando ao mesmo tempo. Faltam
aparelhos. Muitos estão na manutenção. Como são equipamentos obsoletos, a TV
Cultura está criando um verdadeiro time de arqueólogos eletrônicos. São
especialistas em desmontar aparelhos quebrados para manter outros em
funcionamento.
O técnico de vídeo Eliezer de Paula Pereira, de 36 anos, é um deles. Por
ironia, ingressou na emissora em março de 1986, quando um incêndio destruiu
diversos equipamentos. Percebeu que seria útil na reconstrução do patrimônio
destruído. Só não sabia que continuaria, 17 anos depois, tendo de consertar
aparelhos tão antigos quanto os daquela época. “Às vezes, temos de despir um
santo para cobrir outro.” Para não se desatualizar, trabalha também no SBT,
onde conhece outra realidade. Lá, a tecnologia é digital.
A precariedade, antes limitada às condições de trabalho, começa a ser
sentida na casa do telespectador. Por falta de válvulas, transmissores
espalhados em diversas cidades não podem ser consertados. Em 2002, muitos
pontos na periferia de São Paulo deixaram de receber o sinal da TV Cultura.
Perderam a opção de uma programação educativa e cultural para ficar com
Ratinho, João Kléber e companhia. Atualmente, o problema se concentra no
interior. As transmissões estão comprometidas em Presidente Prudente,
Dracena, São José do Rio Pardo, São Manuel, Mirante do Paranapanema e
Cajuru. Em Jundiaí, a potência de 1.000 quilowatts despencou para 50 kW.
O diretor-técnico José Munhoz vive rodeado dessas e de outras preocupações.
Cita a falta de um sistema de ar-condicionado. Há quase US$ 500 mil em
aparelhos comprados, mas que permanecem nas caixas por falta de instalações
adequadas. Ou a caixa d’água que apresenta fissuras. Ou ainda a falta de
piso e forro nas salas de computação gráfica e de corte de imagens. Não há
sensores de fumaça para detectar incêndios. Para pôr toda a casa em ordem,
segundo as contas de Munhoz, a TV Cultura precisa de US$ 15 milhões em
investimentos na Grande São Paulo e US$ 10 milhões na rede do interior.
Como em qualquer lar brasileiro que, sem recursos, adia a troca da TV, da
geladeira ou do fogão antigos, a Fundação Padre Anchieta vive remediando
problemas com o que tem. Do domingo passado até ontem, a Cultura levou ao ar
149 horas de programação, 59% delas de reprises. Não entram nessa conta os
programas novos reapresentados em outros dias da semana. É uma política que
se repete há quase oito anos. Quando mantinha uma programação original, como
com Castelo Rá-Tim-Bum e Mundo da Lua, chegou ao segundo lugar em audiência,
com 12 pontos no horário nobre, e virou referência para a TV brasileira.
A atual gestão admite as dificuldades financeiras, mas defende o modelo de
reprises. “Se estou reprisando, na verdade dou oportunidade para que outras
pessoas possam assistir”, diz o diretor de Programação, Walter Silveira.
“Não é à toa que o Mickey Mouse faz 60 anos e é o maior amiguinho da minha
neta”, afirma o presidente da fundação, o jornalista e escritor Jorge da
Cunha Lima.
Ansiedade – O Vitrine é um dos programas que vêm sofrendo adiamentos
sucessivos. O último inédito foi ao ar em dezembro. De lá para cá, só
reprise. Deveria voltar com material inédito em março. Depois, maio. A
última previsão, junho. Mas a nova versão já poderia ter estreado. As oito
pessoas da equipe de produção estão ansiosas. Já são mais de 15 horas
gravadas. “Está demorando demais, é uma espera angustiante. Estamos sofrendo
com essa crise de ansiedade”, diz Nico Prado, diretor do Vitrine. “Mas a
gente entende que, com essa reestruturação, é preciso esperar.”
Dinheiro pode ser o motivo e a solução da atual crise. Mas há outros
ingredientes nessa discussão. A fundação depende de recursos do Estado. De
cada R$ 10,00 que entram nos cofres da emissora, R$ 7,00 vêm do governo
estadual. Seria uma moeda de troca valiosíssima. Houve épocas em que isso
aconteceu, com grosseiras intervenções no conteúdo político da programação.
Só que hoje há uma compreensão de que o governador não manda na rádio, nem
na televisão. E o conselho curador manda, mas não tem dinheiro.
Ao deixar de repassar recursos, o governador pode pressionar por mudanças na
direção da fundação. É o que estaria ocorrendo, acreditam muitos
funcionários, inclusive o de cargos de chefia. Para o governo, os orçamentos
da rádio e televisão estão sendo mal-administrados (veja na página seguinte).
Lançamentos – Alheio às discussões dessa crise que se tornou pública, o ator
e diretor de programas infantis Fernando Gomes produz a terceira edição do
Cocoricó. Com uma equipe de 40 pessoas, usa a criatividade para baratear a
produção. Um exemplo: para fazer o boneco Júlio encher uma bexiga, Gomes
poderia pensar em usar os recursos de computação gráfica. Preferiu um pedaço
de mangueira de jardim. O resultado é perfeito. “O recurso técnico
mirabolante muitas vezes não alcança os resultados esperados. Além disso, a
pressão é muito maior quando se está trabalhando com muito dinheiro.” E tudo
é feito com a criteriosa supervisão de dois professores e um psicólogo.
Com a nova realidade, a atual administração da TV Cultura vem batalhando por
recursos alternativos. As co-produções de documentários são o exemplo mais
bem-sucedido, acreditam os dirigentes. Até meados dos anos 90, a emissora
produzia uma média de três documentários por ano. Muitos eram traduções.
Hoje, o índice saltou para 70. Mágica? Para o gerente de documentários Mario
Henrique Borgneth, não. Hoje, qualquer pessoa com uma boa idéia tem de levar
também um projeto. Com isso, forma-se uma parceria em busca de patrocínios.
A exibição? Na tela da Cultura.
Cunha Lima afirma que a emissora tem a melhor relação custo-benefício entre
as TVs brasileiras. Significa que para obter uma média entre 2 e 6 pontos no
Ibope gasta-se proporcionalmente muito menos do que os canais comerciais. Só
que poucos sabem disso.
Dois jornalistas acreditam que é preciso romper com a desinformação. Sugerem
divulgar a emissora, fazendo campanhas publicitárias em jornais, revistas e
outdoors. “As pessoas precisam saber que existe um bom produto na Cultura”,
diz o apresentador e editor-executivo do Diário Paulista, Ederson Granetto,
de 47 anos e há 20 anos fazendo televisão. “Precisamos aproveitar a imagem
positiva que ainda temos”, diz Celso Zucatelli, de 30, apresentador do
Edição de Sábado.
Enquanto nada disso acontece e a crise persiste, os 1.177 funcionários da
fundação vão travando batalhas diárias. “As dificuldades estão aí, mas não
significa que estamos sentados, esperando. Vamos trabalhar mais e mais para
superar tudo isso”, diz Zucatelli.
Polêmica sobre verbas chega a R$ 11,5 milhões
Cunha Lima diz que impasse está quase superado, mas secretário faz ressalvas
A solução da maior crise da história da TV Cultura, que parecia próxima de
um fim, ainda promete novos capítulos. Em reuniões realizadas na semana
passada entre representantes da emissora e do governo, muitos dos impasses
de liberação de recursos teriam sido eliminados. Mas na sexta-feira e ontem,
os discursos entre Jorge da Cunha Lima, presidente da Fundação Padre
Anchieta, mantenedora da TV Cultura, e de Andrea Calabi, secretário de
Planejamento, voltaram a se desencontrar.
Na sexta-feira, Cunha Lima afirmou que o governo teria concordado em liberar
R$ 3,5 milhões para verbas de custeio e discutir a concessão, este ano, de
R$ 8 milhões para investimento em equipamentos. No mesmo dia, o secretário
de Planejamento, Andrea Calabi, disse que não estaria acertada a liberação
das verbas de custeio, cuja cifra seria de R$ 1,6 milhão, e os recursos de
investimento poderiam não chegar aos R$ 8 milhões, nem saírem este ano. “É
necessário ver se precisam de toda essa quantia. Dinheiro tem.”
Calabi apresentou planilhas do orçamento mostrando que a Fundação Padre
Anchieta tem recebido recursos crescentes nos últimos quatro anos. Para este
ano, a Fazenda estadual deveria repassar R$ 89,9 milhões, 31% a mais que o
valor de 2002. Já a previsão de crescimento do orçamento do Estado é de 10%.
Ele criticou o fato de dados alarmantes serem tornados públicos para
pressionar o governo a não reter 10% das verbas de custeio ou bloquear
outras.
“Marola pública como instrumento de pressão é inadequada para a própria TV
Cultura”, afirmou o secretário, admitindo que a atual administração da
fundação “pode ter feito menos do que o desejado, mas fez o possível”.
Calabi acredita que problemas como o risco de a caixa d’água da sede da
emissora desabar poderia ser resolvido com soluções emergenciais, como
remover a água e abastecer o prédio com carros-pipa. Ou que a regravação de
fitas de arquivo é um mau sinal: “Se estão gravando, é porque houve erro de
gestão.”
Cunha Lima afirmou ontem que, em relação à liberação de recursos represados,
a questão já teria sido resolvida nas reuniões da semana passada. “Quanto às
insinuações de caráter político e moral a mim atribuídas não preciso dar
resposta nenhuma porque minha lealdade aos ideais éticos e políticos do
governador Geraldo Alckmin datam da eleição de (Franco) Montoro ao governo
do Estado, 21 anos portanto, e foram comprovados em todas as posições em que
fui alçado nesse período.”
Cunha Lima estranhou que a sinalização dada por Calabi de que a liberação da
verba de investimento não está acertada. “Os R$ 8 milhões são absolutamente
indispensáveis, até porque foi mínimo o investimento feito nos últimos nove
anos, um período de profundas transformações tecnológicas. Ocorreu a
migração do sistema analógico para o digital.”
Sobre a afirmação de que pode ter havido “erro de gestão” nos sete anos em
que está na fundação, Cunha Lima rebateu: “Estou tranqüilo pelo fato de que
no período aumentei de R$ 5 milhões para R$ 39 milhões os recursos próprios
da fundação e consegui, apesar de todas as dificuldades, conquistar os
maiores prêmios da TV nacional e mundial, incluindo três dos quatro Emmys
que o Brasil ganhou em 45 anos de TV.”
Um dia antes, Cunha Lima afirmara que tem reduzido custos de produções e,
segundo uma pesquisa, ampliado a audiência da emissora nas classes A e C.
“Meu legado não é caixa d’água, mas uma TV pública e programação de
qualidade.”
Recursos – O professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo Laurindo Lalo Leal Filho, que publicou o livro Atrás das Câmeras,
sobre a TV Cultura, acredita que o momento é adequado para repensar a forma
de financiamento da TV pública. Ele sugere a cobrança de aluguéis das
emissoras comerciais, como Globo, SBT e Record, pelo uso do sinal público.
Essas taxas constituiriam um fundo para as redes de televisão pública.
A presidente da TVE Rede Brasil, Beth Carmona, defende a busca de recursos
próprios, mas diz que as emissoras públicas não podem abdicar das verbas do
Estado. “O dinheiro do governo é dinheiro do contribuinte. A TV pública é um
bem necessário porque ela estabelece parâmetros, dá o ponto de equilíbrio,
forma profissionais e oferece uma opção ao telespectador.”
Beth foi diretora de Programação da Cultura quando a emissora chegou a
atingir o segundo lugar de audiência com alguns programas. Na época, com a
chancela de “apoio cultural”, empresas financiavam a produção de programas
com a simples contrapartida de exibirem seus nomes. A fundação arrecadava
US$ 4 milhões por ano. Atualmente, a empresa Connect, responsável pela venda
de espaço publicitário da TV Cultura, arrecada R$ 12 milhões (US$ 4 milhões,
na cotação atual). E são exibidos comerciais, como nas emissoras privadas.