Publicada em 8 de fevereiro de 2009
O Estado de S. Paulo
Bruno Paes Manso
Eduardo Nunomura
Nas madrugadas de segunda e terça-feira, enquanto a maior parte do Brasil dorme, as compras fervem no centro de São Paulo. Às três da manhã, já há filas de ônibus na Rua São Caetano, no Brás, à espera de vagas. As excursões chegam de diversos Estados, cheias de lojistas e camelôs que gastam em média R$ 2 mil para abastecer seus estoques.
No fim da tarde, depois de um giro completo pelos shoppings e lojas populares, voltam carregados de sacolas. Roupas de R$ 10 a peça, tênis piratas a R$ 35 que fazem mal ao joelho, eletroeletrônicos mais baratos do que os vendidos em Ciudad del Este, bolsas com falsificações de boa qualidade que custam R$ 300 e até games nos quais Ronaldinho disputa o Campeonato Brasileiro como atacante do Corinthians.
Os consumidores das excursões movimentam R$ 1 bilhão em compras mensalmente e transformam o centro de São Paulo no principal polo brasileiro distribuidor de muambas – piratarias e contrabando, papel anteriormente ocupado pelo Paraguai. Só no estacionamento da feira da madrugada, no Brás, chegam em média 9 mil ônibus por mês. No Pátio 25, no centro, são mais 600. “Gastam o mesmo que um europeu num hotel de luxo no Nordeste”, compara o presidente da São Paulo Turismo, Caio Luiz de Carvalho.
O Sindicato dos Auditores da Receita Federal estima que o País perca R$ 30 bilhões em arrecadação com esse tipo de ilegalidade. Com a crise econômica e a vista grossa da polícia, São Paulo deve testemunhar uma nova enxurrada de produtos piratas. “Haverá mais desempregado vendendo e a exportação dos grandes fornecedores buscará os centros mais tolerantes”, prevê Márcio Gonçalves, ex-secretário executivo do Conselho Nacional de Combate à Pirataria.
A pujança do mercado de muambas paulistano se consolidou por estar livre dos rigores da Receita Federal hoje presentes na Ponte da Amizade, em Foz do Iguaçu, e pela ousadia dos contrabandistas, que passaram a trazer produtos para a capital.
Dalva de Oliveira Fernandes organizou excursões de Serra, no Espírito Santo, para Foz por 13 anos. Cansou de ver seus clientes perderem tudo nas blitze. Em 2004, trocou o Paraguai por São Paulo. “Saí do sufoco, é muito mais perto e não tenho de correr de ninguém”, explica. Gilmar Duarte, de Araçatuba, também costumava ir até Foz e Puerto Suárez, na Bolívia. Agora vem três vezes por semana à capital. “Aqui tem até nota fiscal.”
Box no shopping de Law com preço de Iguatemi
O Shopping 25 é abafado e apertado. Parece um pardieiro. Só que disputado e caríssimo. Na semana passada, apenas 1 das 1.480 lojas podia ser locada. Trata-se de um box de 5,5 metros quadrados no 1º andar, custando R$ 1.740 de aluguel e US$ 30 mil de luvas – renováveis a cada dois anos. Um espaço no térreo, considerado “a força do movimento”, chega a US$ 100 mil pelo ponto e mais R$ 2.500 de aluguel. É quase o mesmo preço de uma loja de serviços no Shopping Iguatemi, o templo do consumo de luxo. Lá, o metro quadrado custa, em média, R$ 420.
Quem fatura cerca de R$ 80 milhões por ano com a renda do aluguel e luvas no Shopping 25 é o empresário chinês Law Kin Chong, que já foi apontado pela CPI da Pirataria como o rei do contrabando do País. O empresário, por meio da Calinda, administradora de imóveis, ainda subloca lojas no prédio do Shopping 25 no Brás e no Shopping Mundo Oriental, na região central.
“Imagine se alguém aluga um imóvel e começa a traficar droga dentro dele. O proprietário não pode ser responsabilizado pelo crime do locatário. Law Kin Chong atua hoje no ramo imobiliário e não pode ser responsabilizado se os lojistas vendem produtos piratas”, diz o advogado Miguel Pereira Neto, que defende o chinês.
O preço dos aluguéis nos shoppings populares repletos de muambas indica a força da pirataria e do contrabando na cidade. A Galeria Pagé, de propriedade dos Kherlakians, recebe diariamente cerca 1,5 milhão de clientes. A fila na porta da entrada começa às 5h30. O aluguel de uma loja ali é de até R$ 20 mil. O Estado não obteve retorno da Kher Empreendimentos e Administração, responsável pelo prédio.
Atentos ao papel estratégico desses shoppings na distribuição dos contrabandos e pirataria em São Paulo, representantes de marcas contrafeitas entraram com ação contra a Calinda, alegando conivência da administradora do Shopping 25 na venda de muambas. Conseguiu uma decisão favorável dos desembargadores do Tribunal de Justiça estipulando multa diária de R$ 50 mil para quem fosse pego vendendo produtos falsificados das marcas Nike, Oakley e Louis Vuitton. Avisos em chinês e português alertavam os muambeiros para o risco dessa venda.
Em meio a esse movimento frenético de muambas, o Shopping da Madrugada, no Brás, uma espécie de camelódromo que deu certo, vem conseguindo diminuir a venda de produtos contrabandeados e falsificados nos seus 4 mil pontos de venda. As fraudes existem, mas a maior parte dos vendedores atua no atacado de confecções.
No mercado paralelo, os pontos chegam a valer R$ 150 mil reais. As barracas, espalhadas por 140 mil m² cortado pela linha do trem e cuidadas por 600 funcionários, entre seguranças e serventes, foram concebidas em 2004 para um local de carga e descarga de produtos hortifrutigranjeiros. A GSA, empresa que administrava a área, começou a ser procurada pelos motoristas que paravam nas ruas e passaram a estacionar de graça no local. Foi a chave do sucesso. “As excursões param aqui e compram entre as 2 e 7 horas. Depois, vão para a 25. Revitalizamos o Brás”, diz Giovan Ferreira, administrador do shopping. B.P.M e E.N.
Entrada de ilegais por Foz cai 70%
Houve redução de 70% na entrada de produtos piratas entre 2004 e 2007 por Foz do Iguaçu, segundo o Conselho Nacional de Combate à Pirataria, órgão do Ministério da Justiça. O resultado se deve ao aumento da fiscalização na Ponte da Amizade. Isso não significa que diminuiu o fluxo de muambas. Tanto que as apreensões em todo o País saltaram de R$ 452 milhões em 2004 para R$ 1,2 bilhão em 2008. O número de prisões se multiplicou por 30. Nesse cenário, São Paulo centralizou a distribuição de produtos falsificados e contrabandeados, mas outras capitais como Brasília, Rio e Porto Alegre viram seus camelódromos crescerem sem controle. Até mesmo a tradicional
Feira de Caruaru, em Pernambuco, foi invadida por piratas.
No Paraguai, Salto Del Guairá, vizinha de Guaira (PR) e de Mundo Novo (MS), virou a nova porta de entrada. De olho nesse potencial, o irmão do empresário Law Kin Chong abriu um shopping popular de 30 mil metros quadrados na cidade paraguaia, segundo a Polícia Federal (PF) de Guaira. O América Kin tem duas grandes lojas de 5 mil m² só com mercadoria chinesa. “Eles vendem produtos baratos e evitam falsificação de marcas famosas”, diz o delegado-chefe da PF Érico Saconato. O advogado de Law Kin Chong, Miguel Pereira Neto, afirma que Law não fala com o irmão há 12 anos e nada tem a
ver com o negócio paraguaio.
De Salto Del Guairá, a PF estima que saiam de 15 a 20 carretas de cigarro por dia – com cargas avaliadas em R$ 300 mil –, contrabandeadas para o Brasil. Em 2008, paraguaios festejaram que a cidade superou Pedro Juan Caballero e se tornou o segundo polo de vendas no país, atrás de Ciudad Del Este.
A rota e os esquemas de transporte usados pelos contrabandistas tendem a ser os mesmos dos traficantes de droga e arma. Josimar Marques Soares, o Polaco, pivô da maior chacina do Brasil, ocorrida em Guaira em setembro, quando 15 pessoas morreram, era investigado pela PF por suas atividades como intermediário e transportador de drogas, armas e contrabandos para centros brasileiros via Paraguai.
No Brasil, os escritórios de advocacia têm enorme dificuldade em combater os piratas. “Sabemos onde estão sendo produzidos, como chegam, fazemos apreensões todos os meses, mas é difícil combater o crime porque ele é de pequeno potencial ofensivo”, explica o advogado Wellington S. de Oliveira, que representa as marcas Disney, Adidas, Reebok e Everlast, entre outras. Ainda que as empresas ingressem com uma queixa-crime, o falsário muitas vezes se livra pagando o delito com cestas básicas.
Na semana passada, as entidades lamentaram o que consideram mais uma derrota no combate ao crime: um decreto federal proibiu fiscais da Receita, que patrulham as fronteiras, de usar armas. Resta denunciar. O Fórum Nacional contra Pirataria (FNCP) atende pelo número 0800-771-3627. “Se existe fila do INSS, é porque a Previdência tem cada vez menos contribuintes e a pirataria é parte do problema”, diz Alexandre Cruz, do FNCP.
BRUNO PAES MANSO e EDUARDO NUNOMURA
Tênis, bonés, e roupas são piratas ‘made in Brazil’
Nova Serrana (MG) é conhecida como a “capital nacional do calçado esportivo” – ao que as autoridades policiais acrescem a palavra “falsificado”. Ela é a principal fornecedora de tênis piratas para a região da 25 de Março e do Brás. Cinco distribuidores, homens bem-sucedidos de Nova Serrana, recolhem os produtos contrafeitos em centenas de fábricas na cidade mineira, driblam a fiscalização nas estradas e entregam a mercadoria.
Em 2006, foram apreendidos 47 mil produtos falsificados das marcas Adidas e Reebok. No ano passado, foram 469 mil. A lógica de produção dos contrafeitos repete a fórmula consagrada na China: quem fabrica produtos legais acaba montando um sistema paralelo de falsificação. Em Apucarana (PR), são os bonés. No polo têxtil de Jaraguá (GO), as imitações são de calças jeans e camisetas polo de grife.
Uma vez produzidos, os falsificados contam com uma eficiente rede de distribuição e venda. Quadrilhas se encarregam do transporte. Quando são flagradas, perdem a carga. Mas, na maioria das vezes, os produtos chegam ao destino final. Já a venda é garantida pelos ambulantes. “Se prender mil camelôs, no dia seguinte vão ter outros mil. É a ponta mais frágil do problema, um exército que, como no tráfico de drogas, se substitui”, diz Luiz Paulo Barreto, presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria.
Um exemplo é o comércio que ocorre diariamente, das 4 até as 8 horas, nas Ruas Monsenhor Andrade e Oriente, no Brás. Camelôs vendem cigarros paraguaios e contrafeitos, roupas e brinquedos. As falsificações são mais grotescas. De olho na concorrência, comerciantes abrem as lojas por volta das 5 horas. Foi a forma que encontraram para não perder os clientes para a ilegalidade que prospera. Um ponto na rua está custando R$ 7 mil. E.N.
Produção doméstica de CDs e DVDs é subestimada
Para evitar o flagrante policial, muitos camelôs têm levado para as ruas cópias xerográficas das capas de CDs, DVDs e games. As mercadoria ficam guardadas em locais próximos aos de venda. Para a polícia, o índice de pirataria atual é de 59% para os softwares e 95% nos games de console. As empresas, contudo, sabem que o índice é muito maior.
Munidos de banda larga, os internautas brasileiros já ocupam o sétimo lugar em número de acessos no site Mininova, um dos espaços virtuais onde é possível baixar filmes, músicas e softwares. Por mês, são 4 milhões de visitas e só São Paulo contribui com 900 mil. “Se existe uma banquinha vendendo drogas, a pessoa denuncia. Se vir uma com programas de computador, ela vai lá ver o que pode comprar”, afirma Antonio Eduardo Mendes da Silva, coordenador do grupo antipirataria da Associação Brasileira de Software.
Em 2008, a associação de produtores de games (ESA, sigla em inglês) enviou aos provedores de internet notificações para 138 mil usuários. Eles não só tinham baixado programas como estavam ajudando a difundir a pirataria. Como não existe lei que obrigue os provedores a informarem quem estaria praticando o crime, a medida não surtiu efeito nenhum.
Pela internet, outro crime, mais perigoso, começa a ganhar forma. É o da venda de medicamentos falsificados, clandestinos ou contrabandeados. Na semana retrasada, foi preso em Goiânia um dos maiores distribuidores de remédios online. Em 2008, a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) apreendeu 120 toneladas de remédios ilegais, o dobro da apreensão de 2006. “Já existem evidências de que o crime organizado brasileiro vem migrando do tráfico de drogas para a falsificação de remédios”, afirma Dirceu Raposo de Mello, diretor-presidente da Anvisa. E.N.
Começa na China e termina no camelô
É dia de chuva em São Paulo. Bastam as nuvens escurecerem e os semáforos, estações de metrô e ruas de São Paulo rapidamente se enchem de ambulantes vendendo guarda-chuvas. São espécies de formiguinhas, na engrenagem gigante que faz o negócio da muamba girar em São Paulo. Nessas horas, o pernambucano Eduardo Antônio de Souza, há 12 anos na cidade, deixa de lado a venda de CDs e DVDs piratas e corre para os arredores da Galeria Pagé, que abastece os camelôs. A R$ 3,50, compra os guarda-chuvas que serão vendidos por R$ 6 na Estação São Joaquim do Metrô. “Acaba saindo por R$ 5 porque pechincham”, diz.
A compartimentação da estrutura dessa rede de contrabando e pirataria, assim como em outras estruturas criminosas, é o ponte forte do negócio. Não existe um grande nome por trás da atividade, mas uma miríade de funcionários que, quando presos, são logo substituídos por outros atrás de lucro.
Pequeno, o camelô teria o mesmo papel do traficante de porta de bar. Se abastece dos médios fornecedores: os outlets que, com a ajuda de intermediários, distribuem principalmente produtos chineses. “Podemos fazer uma apreensão gigante de mercadorias. No dia seguinte, é como se nada tivesse acontecido”, diz Rodolpho Ramazzini, da Associação Brasileira de Combate à Falsificação.
A Prefeitura de São Paulo, que entre 2005 e 2008 multiplicou por sete a apreensão de mercadorias ilegais, também não conseguiu evitar o crescimento do mercado na cidade. “A ideia é dar canseira e prejuízo para os comerciantes. Mas não é fácil”, diz Andrea Matarazzo, secretário de Coordenação das Subprefeituras.
A importância que São Paulo ganhou nessa rede mundial de muambas pode ser verificada no mercado de produtos eletrônicos. No começo da década, como boa parte era trazida do Paraguai e revendida no varejo da cidade, não era possível competir com o preço dos vizinhos sul-americanos. Atualmente, os portos nacionais, uruguaios e chilenos viraram portas de entrada para que esses produtos fossem diretamente despejados nos outlets da cidade.
No ano passado, por exemplo, os laptops da marca Acer foram os mais vendidos no Brasil, mesmo sem a empresa dispor de um único representante formal no País. Dos 500 mil comercializados, apenas 90 mil foram registrados na Receita Federal, segundo pesquisa encomendada pelo Instituto Brasil Legal. “O pior é que esses laptops foram vendidos até em grandes redes varejistas, o que mostra como esse tipo de atividade pode ser contagiosa quando tolerada pelas autoridades”, afirma Edson Luiz Vismona, presidente do Instituto Brasil Legal.
A sofisticação das quadrilhas pode ser atestada nos portos nacionais. Empresas-fantasmas, mas inscritas na Junta Comercial, aprenderam a burlar a fiscalização automatizada da Receita Federal. Se a papelada estiver em ordem, o contêiner é encaminhado para o chamado “canal verde”. É liberado sem fiscalização. Mas foi graças à teimosia de um grupo de auditores que uma carga de 400 mil pares de óculos contrafeitos foi interceptada. Provenientes de Xangai, na China, eles eram identificados como “lentes acrílicas para óculos”, o que é permitido. Os fiscais só puderam checar os produtos ao descobrirem que os maiores fabricantes do País não compravam dessa importadora.
Maior do Hemisfério Sul, o Porto de Santos desembaraça cerca de 3.750 contêineres por dia só da parte de importação. Nos últimos cinco anos, quadruplicou a quantidade de mercadoria apreendida na 8ª Região Fiscal, onde fica esse porto. Bem mais que o crescimento das outras aduanas brasileiras, que foi multiplicado duas vezes e meia no período, saltando de R$ 415,6 milhões para R$ 1 bilhão em produtos apreendidos. Na terça-feira, a alfândega de Santos leiloará 165 lotes com milhares de produtos importados ilegalmente – crime do descaminho. O valor estimado da carga: R$ 12 milhões. BRUNO PAES MANSO e EDUARDO NUNOMURA.