Respeito entre patrões e a ‘peãozada’

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Publicada em 16 de junho de 2003
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Qualquer historiador da indústria automobilística brasileira tem de reservar
um capítulo exclusivo sobre o sindicalismo da região do ABC. Os
trabalhadores da Ford, em especial, servem como um dos melhores exemplos
para ilustrar as diversas transformações sofridas na relação
capital-trabalho. Eles foram protagonistas de vários episódios no pátio da
empresa em São Bernardo do Campo que se tornaram emblemáticos para a luta
dos metalúrgicos. “A montadora sempre foi a linha de frente do movimento
sindical”, diz João Cayres, de 33 anos, da Comissão de Fábrica de
Trabalhadores da Ford.
A comissão foi, nas palavras dos trabalhadores, “conquistada em 21 de julho
de 1981”. Surgiu depois de uma greve de 51 dias. Até hoje representa os
empregados horistas (fábrica) e mensalistas (escritórios) em todas as
ocasiões. É lá que a “peãozada” vai buscar socorro. Nas suas salas, ao
contrário de outras na empresa em que a foto de Henry Ford reina absoluta,
as paredes lembram a de um comitê do Partido dos Trabalhadores. Lula,
candidato, está presente. A simples existência de uma comissão dentro da
fábrica reconhecida pelos trabalhadores fez dela um pequeno mas barulhento
referencial para o movimento sindical.
“A Ford, mundialmente, sempre foi muito forte contra os sindicatos. Mas aqui
a comissão peitava os patrões. Assim como o brasileiro é bom de futebol; os
americanos, de basquete; o funcionário da Ford é bom para lutar por seus
direitos”, diz Cayres. Por essa comissão passaram líderes que depois
presidiram o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Jair Meneguelli, hoje
presidente do Conselho Nacional do Serviço Social da Indústria, foi um
deles. “Minha impressão é de que a negociação sempre foi mais fácil de ser
feita com a orientação americana do que com as demais.”
Meneguelli lembra que certa vez, quando ainda não gozava da imunidade
sindical, foi depor na Polícia Federal em favor do então presidente do
sindicato, Luiz Inácio Lula da Silva. Era o período da ditadura e das
perseguições políticas. Achou que seria demitido no dia seguinte. Ledo
engano.
A conscientização dos trabalhadores da Ford era maior até mesmo que a dos
líderes sindicais, reconhece Meneguelli. “Numa das greves, propus do alto do
carro de som que se quebrasse uma máquina para cada um dos 400 trabalhadores
que a empresa prometia demitir. Houve demissões, só que nenhuma máquina foi
quebrada porque eles sabiam que tinham de garantir o trabalho para quando
voltassem ao batente.” Meneguelli entrou em 1963 na Willys do Brasil, que
quatro anos depois foi comprada pela Ford.
Sabotagens – José Lopes Feijóo, atual presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos, entrou em 1973 na empresa como conferente cíclico. Em 1986,
foi demitido com os outros representantes da comissão de fábrica. Motivo
para novas mobilizações, paralisações e até sabotagens dos trabalhadores na
produção.
Quatro anos depois, veio o ápice das brigas com a greve dos “golas
vermelhas”. Todos os funcionários da ferramentaria eram identificados pelo
uniforme com golas vermelhas. Mas os sindicalistas afirmam que o
quebra-quebra com carros queimados e destruídos no pátio de São Bernardo não
foi provocado pelos ferramenteiros. “A Ford tentou jogar trabalhador contra
trabalhador. A empresa deixou de pagar o salário de quem não estava em
greve, o que gerou a revolta”, diz Feijóo.
Depois desse episódio, os trabalhadores reconheceram que negociar dava mais
resultados e a empresa passou a respeitar a comissão de fábrica. Em dezembro
de 1998, o melhor exemplo de que a luta continuava, mas havia respeito
mútuo. Diretores da Ford foram até o sindicato informar a gravidade da crise
e a necessidade de demitir 2,8 mil funcionários. Houve vários acordos para
que o quadro de pessoal fosse encolhido. Para quem ficou, estabilidade até
2006. “Hoje reconhecemos que o setor não está numa situação boa, o que
significa que temos de saber sentar e conversar”, diz Cayres.
O supervisor de Suporte Técnico de Serviço, Nelson Luiz Ott, de 45 anos,
comemora os novos tempos. Filho de um ex-metalúrgico que começou a trabalhar
em 1947, na fábrica da Ford da Rua Solon, no Bom Retiro, Ott herdou do pai a
paixão pelo automóvel. Brinca que “nasceu com o avô Ford no berço”. Só que
não imaginava ter vivenciado os “métodos” dos sindicalistas nos anos 70 e
80, quando era obrigado a participar de manifestações. “Era muito tenso,
porque além da pressão de estar trabalhando, havia o medo de não voltar para
casa.” Atualmente, é responsável pela produção dos manuais que equipam os
veículos da empresa. Mas sua admiração é tanta que, com o pai, fundou o
Clube Ford V8.
A planta da Ford em São Bernardo do Campo, que ocupou as instalações no
terreno de 1,3 milhão de metros quadrados da antiga Willys, já viveu
momentos de glória. Chegou a ter 10 mil operários no fim dos anos 70. Hoje,
são 4 mil. Mas foi dali, pela equipe pilotada pelo engenheiro Luc de Ferran,
que saíram o Corcel II, o Del Rey, o Escort e os primeiros motores a álcool.
Formação – A sofisticação na relação patrão e empregado na Ford, como em
outras montadoras do ABC, resultou na melhor qualificação da mão-de-obra. Os
dois lados sabem que ter um operário mais capacitado é bom para todos. O
montador Moisés Abraão da Costa, de 39 anos, está no último ano do curso
superior de processo de produção. Investe quase um terço de seu salário de
R$ 1.600 com a mensalidade no Centro Universitário de Santo André. Decidiu
seguir nos estudos por incentivo da chefia. “A Ford está tentando inserir
seu pessoal do chão de fábrica no processo de qualidade. Se enxergo
melhorias na minha área, tenho condições de sugerir para que possamos
melhorar a forma de trabalho.”
É uma diferença e tanto. O metalúrgico Armando Fagundes Silva, de 54 anos,
define os novos tempos: “Desconheço uma relação capital-trabalho como a da
Ford.” Muito diferente de quando, anos atrás, os empregados apelidavam um
programa de qualidade, o CCQ, como “comendo calado e quieto”. Hoje, Silva
fala com orgulho do FPS, o Sistema de Produção Ford. “É algo que se aplica
em qualquer lugar, até na casa da gente. É como uma constituição da empresa
para buscar qualidade.” Ex-colega de fábrica de Lula, foi ele quem entregou
ao presidente, no mês passado, uma placa de madeira com o mascote dos
metalúrgicos, o João Ferrador. No regime militar, levava a inscrição “Hoje
eu não tô bom”. A nova inscrição estava diferente: “Hoje eu tô bom.”
O metalúrgico sonha em ver seu filho Roberto dos Santos Silva, de 16 anos,
trabalhando na Ford. Já comemora o fato de ele ter entrado em primeiro lugar
numa das vagas que a empresa oferece para cursos técnicos no Senai. Próximo
da aposentadoria e com o filho praticamente encaminhado, Silva só lamenta
não ter dado um recado ao presidente Lula no rápido encontro que teve:
“Queria ter dito, com mais clareza, que o chão de fábrica mudou. O Lula ia
ficar feliz de saber que o nosso sonho virou realidade. Ele só lutou. Eu
estou vivendo essa realidade.”

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