Como formar e desperdiçar pesquisadores

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Publicada em 13 de julho de 2003
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Do início de 1995 até o fim do mês, o Brasil terá investido mais de R$ 130
mil na formação de Lúcia Helena Carvalho, de 32 anos. A Universidade
Bandeirante agradece. A Uniban, que cobra mensalidade de R$ 605,00 dos
alunos de biomedicina, terá o privilégio de contar com as aulas da
pesquisadora a partir de agosto. E a ciência brasileira perderá mais um de
seus quadros.
Com nível de pós-doutorado e atuando num conceituado laboratório do
Instituto de Química da USP, Lúcia Helena é um exemplo de desperdício na
pesquisa brasileira. Sem condições de absorver seus mestres e doutores, o
País perde talentos para o mercado, que os utiliza em outras funções, com
raras exceções. Alguns vão vender máquinas e produtos.
“As estatísticas dizem que precisamos de mais pessoas qualificadas.
Formamos esse pessoal, mas não há emprego para todos”, atesta Mari Cleide
Sogayar, do Departamento de Bioquímica e orientadora de Lúcia Helena.
A pesquisadora e futura professora da Uniban preferia continuar na bancada,
fazendo ciência – estuda a ação de hormônios glicocorticóides na
proliferação celular. Tanto que já prometeu manter um vínculo informal com a
USP, sem remuneração. Poderia ter insistido na renovação da bolsa, mas com a
procura gigantesca suas chances eram reduzidas. “É dose ter de ficar
esperando sentadinha, sem saber se vai ser aceita ou não.” Indo um dia por
semana à Uniban, receberá mais que os R$ 2.100,00 da bolsa.
Qual a conseqüência disso? Novos estudantes têm de ser treinados. É quase
uma volta à estaca zero. Mas esse é só um dos problemas na formação de
pesquisadores. As três maiores instituições que oferecem bolsas de
pós-graduação, Capes, CNPq e Fapesp, não dão conta da demanda nacional.
Particularmente para São Paulo, as duas primeiras vêm diminuindo a oferta. A
Fapesp está cobrindo a diferença. E como todas investem em outras áreas além
das bolsas, a seleção de mestrandos e doutorandos está mais rigorosa. Uma
das conseqüências foi a redução de bolsas de estudo no exterior. Nos dois
níveis, as três agências financiam quase 30 mil bolsas.
E os valores das bolsas estão defasados. Um pesquisador em início de
carreira, o mestrando, ganha de R$ 725,00 a R$ 930,00. Um doutorando, de R$
1.072,00 a R$ 1.770,00. O farmacêutico bioquímico Wagner Ricardo Montor, de
26, faz doutorado. Com a bolsa de R$ 1.430,00, ajuda a família de classe
média, vai poucas vezes a restaurantes, não tem carro e economiza o que
pode. Muitos já fazem isso, por precaução.
“Essas contas acabam consumindo raciocínio, que deveria ir para a pesquisa.
Daria para produzir mais”, diz Montor, que estuda a ação do ácido retinóico
(um derivado da vitamina A) contra tumores no cérebro. Como todo
pesquisador, afirma que dinheiro não é seu principal objetivo, mas se
preocupa com o futuro próximo. Seguirá no pós-doutorado e não descarta a
hipótese de recorrer a uma bolsa em instituições estrangeiras. Causam menos
stress.
Formação – A pós-graduação tornou-se um grande marco da ciência e do ensino
no País. Só que, de cada dez pesquisadores, um pertence a uma universidade
privada. É um número que tende a crescer, mas talvez só em algumas décadas.
Já as empresas investem pouquíssimo e não aproveitam os cientistas. O poder
público, sozinho, não faz milagres.
Nos últimos 30 anos, houve a grande expansão da pesquisa pública. Entre
1966 e 1975, foram criados 402 cursos de pós. Mais de um quarto deles em São
Paulo. Até 1985, o aumento na formação de pesquisadores ocorreu basicamente
no Sudeste. Só na década seguinte procurou-se acabar com essa concentração.
Mas até hoje a USP forma um grande número de cientistas. Em 2002, foram
3.289 mestres e 2.070 doutores.
Estudiosos vêm alertando que só a concessão de bolsas é insuficiente para o
progresso da ciência. Como houve uma excessiva vinculação da pesquisa à
pós-graduação nas últimas décadas, boa parte do dinheiro para o setor vai
para bolsistas. E muitos deles, após a obtenção do título, deixam de
produzir pesquisas relevantes. A torneira, como se vê, continuará aberta.

Quais são os maiores problemas da ciência brasileira? *
Luiz Hildebrando Pereira da Silva põe o dedo na ferida: “A ciência no País
tem um caráter predatório do gasto social. Hoje, a sociedade trabalha para
satisfazer a curiosidade intelectual dos cientistas. Se não existe o elo
entre eles e instituições capazes de captar esse conhecimento,
transformando-o em produtos, serviços e processos, ele (o conhecimento) só
vai ser destinado para a produção de artigos científicos.” Há um abismo
entre o que se produz nos laboratórios e o que necessita a sociedade, já tão
carente de recursos.
Cientista prestigiado no mundo todo, Hildebrando desenvolve pesquisas no
Instituto em Pesquisas de Patologias Tropicais em Rondônia. Tem em Porto
Velho um centro tão bem informado quanto outro em Cambridge, na Inglaterra,
ou Harvard, nos Estados Unidos. De lá, trabalha em colaboração com o Centro
Nacional de Epidemiologia, de Brasília, a Fiocruz, no Rio, e grupos de
universidades brasileiras. Faz pesquisa aplicada de Primeiro Mundo, mas sabe
que outros enfrentam dificuldades de Terceiro.
“O Brasil é como uma Suécia implantada na África. Algumas pesquisas são
equiparadas às melhores do mundo, mas temos outras que trabalham de forma
precária, sem informação ou estrutura”, diz. Como exemplos da “Suécia”,
lembra as pesquisas da Embrapa, a genômica e, voltando ao passado, as do
Instituto Oswaldo Cruz, que permitiu o surgimento de cientistas como Carlos
Chagas, Gaspar Viana e Adolpho Lutz.
Otimista, Hildebrando acredita que o Brasil já tem, relativamente, um
diagnóstico claro do que precisa ser feito para a ciência. Alguns caminhos
já foram traçados, como ter agências para investir em pesquisa de nível
internacional. Há ainda uma preocupação do governo em destinar recursos mais
volumosos para a área, os fundos setoriais, mas que faltam ser
implementados. “Temos de superar certas culturas subdesenvolvidas. A
formação de uma corrente envolvendo cientistas, técnicos, gestores e
empresários ainda vai levar certo tempo”, prevê.
* Publicada em 14 de julho de 2003

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