Publicada em 27 de julho de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Quem viaja para o litoral paulista pela Rodovia Anchieta tem a sua atenção
invariavelmente voltada para o imenso outdoor à direita, na altura do km 23.
Nas cores da Bandeira brasileira, um logotipo da Volkswagen simboliza a
força da gigante multinacional alemã. Há uma semana, contudo, o motorista
que vai nesse sentido só tem olhos para o seu lado esquerdo. Num terreno da
montadora de 170 mil metros quadrados, amontoam-se centenas de barracos de
lona, pretos em sua maioria. Remetem aos acampamentos dos sem-terra. Mas são
os sem-teto, a versão urbana dos invasores rurais. Já passam de 4 mil
famílias. Ao redor delas, uma complexa rede de líderes de movimentos
sociais, políticos, sindicalistas e oportunistas de plantão.
A luta é por moradia. Mas nem todos precisam dela, como reconhecem os
líderes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Com a publicidade da
invasão, muitas pessoas começaram a procurar o acampamento, batizado de
Santo Dias. Entre eles, os oportunistas. Na madrugada do dia 18, 400
famílias iniciaram a invasão. Ontem, esse número já havia sido multiplicado
por dez. Aos organizadores, esse aumento interessa, já que ganham um maior
poder de pressão. Tudo sob controle, segundo a porta-voz do movimento
Iracema Mendes da Silva, conhecida como Aninha.
“Isto aqui é um processo de seleção natural. Quem precisa, fica.” Segundo a
líder, é comum acampamentos sofrerem um inchaço inicial para depois
encolher. Foi assim no assentamento Anita Garibaldi, que começou como uma
ocupação com 12 mil famílias e onde hoje restam 1.870. Aninha ganhou um
lote, que deixou com o filho para não abandonar a luta. “É a questão da lona
preta, da falta de banho, do risco de despejo, tudo isso até dar resultado.
Os oportunistas não esperam todo esse tempo. Aqui, de noite é uma geladeira
e de dia, um microondas.”
O maior temor dos líderes do MTST é que a opinião pública se volte contra
eles. Por isso, tratam de controlar ao máximo quem fala pelo movimento. É
uma preocupação redobrada com a morte do repórter fotográfico Luís Antônio
da Costa, o La Costa, que prestava serviços à revista Época e foi morto com
um tiro no peito na frente do Santo Dias na quarta-feira. Não há, contudo,
restrições para a aproximação dos políticos, sindicalistas e voluntários de
outros movimentos sociais. Até estudantes universitários freqüentam o local
com interesse sociológico.
PC do B, PSTU e membros do PT de São Bernardo do Campo dão apoio declarado à
invasão. Assim como o Movimento dos Sem-Teto, sindicatos dos professores
estaduais e de servidores de Santo André. Um ofício enviado na segunda-feira
ao prefeito Willian Dib (PSB) e assinado pelos vereadores petistas pedia
caçamba, caminhão-pipa, banheiros públicos, médicos, preservativos,
instalação de rede de água, esgoto e luz para o acampamento. “Isso é um
problema entre a Volkswagen e os invasores. A prefeitura não tem como
intervir”, informou Dib.
‘Organizem-se’ – O vereador do PT Aldo Santos admitiu que sua vida política
está ligada ao movimento dos sem-teto e discordou da direção nacional do
partido que condenou as invasões de prédios e terrenos particulares. “Temos
uma leitura diferente. Se o movimento não estivesse organizado, ninguém
estaria falando dele. O PT foi criado na luta contra a ditadura, pela
conquista da terra e da moradia e não acredito que possa ser diferente
agora.” Da corrente Avançar a Luta Socialista, Santos foi autor de um
inflamado discurso que incitava moradores de rua a ocupar terrenos da cidade.
“Não adianta somente reclamar. Ora, vocês conhecem muitas áreas em São
Bernardo. Não conhecem? Vocês têm que mapear essas áreas e ocupá-las também
para terem casa. Temos que organizar isso. Temos tantas áreas boas em São
Bernardo. (… ) Então, gente, se organizem também, criem um grupo de
sem-teto, assim com os sem-terra estão fazendo no interior, levando os
trabalhadores, se organizem, porque tem muita área boa em São Bernardo se
vocês forem para lá, porque vai ser melhor servir a vocês do que servir para
exploração imobiliária”, discursou Santos em 18 de junho na Câmara Municipal.
O seu colega de partido Antonio Carlos da Silva, o Toninho da Lanchonete,
assinou o ofício do dia 21 de julho, mas desde então adotou um discurso mais
moderado. Lembrou que a prefeitura não podia atuar em terreno particular,
que o pedido de preservativos foi um exagero e seu intuito era resolver um
problema humanitário. “Sabemos que o País não comporta esse tipo de caminho
(o das invasões) e agora a solução é dialogar.”
Dirceu Travesso, da direção nacional do PSTU, disse que a militância de seu
partido está “correndo a região para ajudar a organizar a ocupação” e alguns
prestam apoio jurídico aos sem-teto. Considerou viável a ocupação do terreno
para moradia, desde que seja urbanizado. E afirmou que não são essas
ocupações que prejudicam o governo federal. “A imagem dele está sendo
destruída pela submissão aos banqueiros, pela política dos juros altos e
pela privatização da previdência.”
Em visita ontem de manhã ao acampamento, o presiedente da CUT, Luiz Marinho,
e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, José Lopez Feijóo,
anunciaram que suas entidades vão doar arroz e feijão aos sem-teto. Marinho
e Feijóo vão tentar abrir um canal de negociação com a Volkswagen para
conseguir a doação do terreno aos invasores. A polícia deteve ontem um
suspeito da morte de La Costa, mas o liberou.
Improvisação – A região metropolitana tem um déficit de mais de 600 mil
moradias. Na década de 90, o número de domicílios aumentou menos de 25%. Já
o de locais improvisados como moradia cresceu 110%. Com essa demanda, não é
de se estranhar que as invasões se multipliquem.
Na capital, o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC) atuou na tomada de
quatro prédios, entre eles hotéis abandonados como o Danúbio e o Terminus.
Fruto de uma ruptura do Fórum de Cortiços, o MSTC ocupava até ontem a frente
da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do governo
estadual. Como no caso dos acampados do ABC, o movimento sofre assédio da
máfia das ocupações. “Chegam muitos oportunistas. Certa vez, um grupo veio
com proposta para empregos. Depois descobrimos que eles usariam o nome do
movimento para ficar com 90% do dinheiro”, diz a coordenadora, Ivaneti
Araújo.
Essa rede que usa o nome dos sem-teto ajuda a perpetuar o estado de miséria
em que vivem. Rosileine Aguiel da Silva, de 22 anos, vê o acampamento da
Volkswagen como sua última esperança. Ocupava um barraco, doado por um
homem. Filha de pais separados que teve de morar com uma tia que a
espancava, vive de favores na casa de outro tio. Mas no fim de agosto será
desalojada. O marido a abandonou com outra menina de 14 anos, quando estava
grávida do quarto filho. “Às vezes, é até difícil pensar no que vai ser.
Não posso dar um futuro para meus filhos. Eu só queria dar a eles um lugar
para morar.” Os oportunistas não pensam nas Rosileines.