Publicada em 27 de julho de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Mais do que uma grande idéia, eles têm uma câmera na mão. Moderna, compacta
e a preços relativamente baratos, a chamada mini-DV tem permitido uma
explosão de projetos audiovisuais na periferia de São Paulo. São
curtas-metragens experimentais. Com o equipamento digital, os manos, as
minas e o restante da comunidade estão entrando nas ruas, vielas e nos becos
para revelar um mundo esquecido. Para muitos freqüentadores das salas de
cineclubes e do circuito alternativo, são imagens que trazem histórias,
locações e personagens desconhecidos e surpreendentes. Para os realizadores,
a possibilidade de produzirem e editarem a sua realidade pela primeira vez.
Antes, eles nunca se viam na tela de cinema.
Aos poucos, a cinematografia da periferia vai ganhando sua forma. Se na
trilha sonora o rap domina, as imagens estão num processo de intensa
captação. Invariavelmente, os temas são pobreza, discriminação racial,
desemprego, condição da mulher e do adolescente, música e política. No plano
subliminar, discute-se muito sobre a absoluta falta de diálogo entre as
classes sociais. “Sim, somos excluídos, sempre falta oportunidade para nós.
Quando ela surge, aí temos muitos precisando dela. Os poucos que têm essa
chance mostram que são capazes”, diz Tiago Costa, de 17 anos, DJ do grupo de
rap Manos de Responsa.
Em abril, Tiago e um grupo de quase dez pessoas se uniram para produzir
Dia-a-Dia, um curta de ficção rodado na Favela Heliópolis, na zona sul. O
roteiro conta a história de dois jovens pobres que trilharam caminhos
distintos. Um foi para o chamado “lado A”, o de viver dentro da legalidade,
sonhando em arrumar emprego e cujo futuro está num grupo de rap. O outro
personagem vive os dramas do “lado B”, o da família desestruturada, o da
criminalidade como a saída mais fácil. Ambos são amigos de infância e o
primeiro tenta recuperar o outro pela cultura. No mês que vem, a comunidade
vai poder assistir ao vídeo, ainda inédito.
A obra de Tiago e sua turma é fruto do trabalho de três anos da Associação
Cultural Kinoforum. A constatação inicial, óbvia mas pouco levada em
consideração pelos mecenas, era a de que faltava levar e promover cultura em
comunidades da periferia. Cinema nacional sempre foi um sonho ou parte da
programação ocasional das emissoras de TV. Em 2000, o cineasta Christian
Saghaard decidiu levar projeções de filmes brasileiros para o Capão Redondo,
na zona sul. Constatou, de imediato, que pouco acrescentaria com o cinema de
uma mão só. Precisava motivá-los. No ano seguinte, surgiram as oficinas.
“Não moramos lá, apenas supomos como as coisas acontecem na periferia”, diz
Saghaard. Ex-aluno da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade
de São Paulo (USP), ex-morador do Itaim-Bibi e da Vila Madalena, o cineasta
vive hoje num bairro periférico de Osasco. Não é altruísmo, mas identidade
com o mundo que vem ajudando. Conhece e freqüenta locais distantes do centro
como Jardim São Luiz, Cidade Tiradentes, Cohab Raposo Tavares, Paraisópolis
e Brasilândia. Com sua equipe, aproxima-se dos líderes comunitários, propõe
oficinas em três fins de semana e dá início à formação de novos produtores
culturais. “Se a gente só desse a câmera, já teríamos uma experiência muito
interessante, mas para eles não acrescentaria nada.”
Diferenças – O comerciante João Carlos Ferreira Chaves, o JC, de 21 anos,
que trabalha em lojas de R$ 1,99, produziu dois vídeos no ano passado, Assim
Que É e Do Outro Lado da Moeda. O primeiro mostra as dificuldades de uma
escola de samba e grupos de rap. Tem duração de cinco minutos. Já o segundo
é sobre uma família de classe média alta que vai morar em Cidade Tiradentes,
o bairro a 31 quilômetros da Praça da Sé e com mais de 200 mil habitantes.
Foram gravadas 2 horas e meia no suporte digital, mas a edição final ficou
com 20 minutos.
A vontade de manter-se na área cultural fez com que JC e outros colegas
criassem o projeto Filmagens Periféricas. Para bancar o sonho, eles
trabalham com a produção de vídeos caseiros, aqueles que são feitos em
festas de casamento, aniversário e batizados. Paralelamente, JC participa do
Joinha Filmes, uma união de oito jovens que realizam filmes em bairros como
Cidade Tiradentes, São Miguel, Jardim Rincão e Parque Bristol. Desse grupo,
já foi produzido Atitude na Cena, um documentário de 20 minutos sobre os
jovens que realizam trabalhos sociais nas comunidades. “Também produzimos
cultura, embora muitos não saibam. Você assiste ao (Programa do) Faustão e
vê um bacana dizendo que o filho dele já cantava desde os 3 anos. Isso é o
que mais tem por aqui.”
Outra iniciativa semelhante é o Núcleo de Estudos de Realização Audiovisual
Monte Azul, o Nerama, de um grupo de realizadores da zona sul. A idéia é
levar para a Favela Monte Azul, onde já existe uma associação comunitária,
projetos de audiovisual, como a projeção de filmes ao ar livre e produção de
vídeos. Encontram resistências já no local, embora muitos moradores defendam
a idéia. “Não vou ao cinema por falta de dinheiro. Na TV não pago nada e
tenho vídeo”, explica a moradora Adriana Vicente Silva, de 29 anos.
Desse grupo, já foram produzidos documentários ficcionais como Tato e
Vira-Vira. Um fala sobre a dificuldade de um jovem skatista em arrumar um
emprego e o outro, sobre o alcoolismo. “Não fiz Faap, não estou na ECA, mas
faço curta-metragem. Ao menos quando filmamos, o público daqui se reconhece,
vê suas ruas e suas casas”, diz Luciano Oliveira, de 20 anos, roteirista de
Tato e, posteriormente, contratado pela Kinoforum.
Lição – Em fase de finalização, Novos Quilombos de Zumbi é o novo
documentário do cineasta Noel Carvalho, do movimento Dogma Feijoada. Morador
do Jardim São Luiz, na zona sul, Carvalho insiste para que a reportagem
coloque suas credenciais de mestre em cinema na Unicamp e doutorando em
ciências sociais na USP. Ele explica: “O pobre hoje é minimamente
escolarizado, tem televisão, consome e quer se ver na TV ou no cinema.”
Quando começou a gravar, o cineasta pretendia ser o “Amaury Jr. da
periferia”, falar das coisas boas e bacanas das comunidades pobres, dar-lhes
direções e caminhos de reflexão. Deparou-se, logo de saída, com um cadáver
num cemitério e um bebê jogado numa lata de lixo. Foi uma lição. Resolveu
incluir o homem morto e excluiu a outra cena chocante na edição final, que
inclui depoimentos de rappers, escritores e artistas da cena negra
brasileira. “Quero fazer esse filme para que meu sobrinho veja e não tenha
vergonha de ser negro, pobre e more na periferia.”
Com câmeras que custam menos de R$ 10 mil, mas permitem qualidade
profissional, as imagens começam a aparecer. Todas são exibidas na
periferia, que começa timidamente a criar uma cultura de cinema com projetos
de exibição. O Cinema na Rua é um deles, que já exibe uma vez por mês a
produção nacional no Jardim Ângela e em Cidade Tiradentes. Há sessões
concorridas. Ninguém sabe se esse movimento pode resultar no surgimento de
um Mano Brown do cinema. As comunidades trabalham para isso. Se puderam
criar um ícone da música brasileira, um fenômeno do rap que vende mais de 1
milhão de discos à margem da grande indústria cultural, por que não
construir outra realidade na sétima arte?
Filmes permitem aos moradores a descoberta da própria realidade
Às vezes é preciso superar reações contrárias dentro da própria comunidade
Esse olhar de dentro, que traz ares novos para o cinema, serve também para
reduzir preconceitos que existem nas próprias comunidades da periferia. É
uma espécie de autodescoberta, com o uso de uma linguagem nova e
tecnicamente imperfeita. Às vezes, vira uma autocrítica. A professora de
português Inês Silva dos Santos, da Escola Municipal Antônio Carlos de
Andrada e Silva, em São Miguel Paulista, viu na produção de vídeos a
possibilidade de responder a uma questão que sempre a perseguiu: quem são
seus alunos? Além do Papel é um documentário de 20 minutos resultado de mais
de 7 horas gravadas por ela e outros colegas professores com cinco
estudantes na escola e em suas casas. O resultado surpreendeu a equipe.
“Esperamos que o professor que veja o filme se sensibilize para ver que ali
há mais que um simples aluno, que não é uma pessoa fictícia”, explica. Mas
Inês dá uma outra dica para compreender melhor a obra produzida: “Queremos
mostrar que além da escola que não enxerga seus alunos, na mídia nós da
comunidade também não somos representados e retratados.” O projeto faz parte
de um conjunto de seis documentários que só precisa de um incentivo
financeiro para ser finalizado.
O professor de matemática Eduardo Rodrigues, da Escola Estadual Filomena
Matarazzo, também finaliza seu vídeo, ainda sem nome. É uma obra narrada
pelo pintor Mateus Santos, de 70 anos, que criou quadros para explicar a
origem do bairro da escola, Ermelino Matarazzo. Foi nesse grupo escolar que
surgiu o pontapé para o projeto Cinema e Vídeo Brasileiro nas Escolas, da
ONG Ação Educativa. No local, funciona o Cine Filó, uma sala de 100 lugares
que exibe filmes para ajudar nas aulas – ou preencher as vagas – e, nos fins
de semana, promove sessões gratuitas para a comunidade. Há duas semanas,
pela primeira vez nos 16 anos da Mostra do Audiovisual Paulista, foram
exibidos curtas nesse espaço alternativo na zona leste.
Com recursos da Fundação Abrinq e Natura Cosméticos, o programa da Ação
Educativa leva videotecas com mais de 450 títulos nacionais para escolas da
zona leste. Os filmes podem ser retirados por empréstimo pelos alunos e
professores. Há preciosidades, como documentários de Thomaz Farkas, que
havia produzido especialmente para ser exibidos em escolas. Com a
burocracia, nunca conseguiu que as fitas chegassem ao destino. Dessa vez,
sim. No acervo, de cada dez fitas, seis raramente são encontradas em
locadoras convencionais.
Além das escolas Filomena e Antônio Carlos, a estadual Madre Paulina, no
Itaim Paulista, também participa. Até 2005, deverão ser incluídas outras
oito unidades. Todas devem ganhar um kit básico contendo uma câmera digital,
equipamento de luz, microfones. Para a zona leste, estão previstas duas
ilhas de edição. “Não estamos aqui para substituir o Estado. Não somos nós
que vamos implementar maciçamente o projeto, mas queremos envolver o poder
para que ele veja isso como uma política pública”, explica Alexandre
Kishimoto, que trabalha com Luiz Barata na coordenação.
Fronteiras – O professor de roteiro da ECA Roberto Moreira é um entusiasta
dessa nova safra de produtores de vídeos da periferia. “Eles rompem a
segregação social. Só que aí vai surgir um problema: eles vão ter que
aprender a contar histórias. A diferença é que, desta vez, eles têm a
possibilidade de.” Indiretamente, Moreira faz parte desse novo olhar
cinematográfico sobre a periferia. Ele finaliza o filme Contra Todos, uma
ficção com tom de documentário sobre uma família que vive em Aricanduva, na
zona leste. “Temos a 5 quilômetros do centro um mundo de fronteiras, em que
a lei e o Estado não estão bem estabelecidos.”
A escolha de Aricanduva foi definida após uma seleção que incluiu outros
bairros como Capão Redondo e Brasilândia. Só que ele pretendia fugir do
clichê de Terceiro Mundo, mostrando exaustivamente favelas. “Aricanduva tem
um lado de subúrbio, com casas, sobrados se misturando a barracos em ruas
vazias. Há uma certa melancolia”, diz Moreira. A trama envolve desintegração
familiar, violência, traição e brigas. Preconceito de um autor com olhar de
fora? “Não é um filme sociológico sobre a periferia.”
Filmes como O Invasor (Beto Brant), Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodansky) e
Um Céu de Estrelas (Tata Amaral) são apontados como integrantes do novo
realismo do cinema paulista. Em vez de se fecharem no circuito
Paulista-Jardins, vão com suas câmeras às casas empobrecidas e aos conflitos
familiares das classes média e baixa dos bairros afastados. Para o cineasta
Moreira, o fato de novos produtores estarem olhando com mais vontade e
interesse para a periferia é parte da percepção de um mundo novo que surge,
para quem está dentro e fora dela. “Tem algo ali que é instigante, vivo e
intenso. É um espaço que engendra novos pontos de vista social”, diz.