A família Siqueira segue seu próprio rumo

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Publicada em 8 de agosto de 2003
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Dois colchões, lençóis, pratos de plástico e panelas sujas, baldes, bacias,
um triciclo, um pacote de maisena e o fim do sonho de uma nova casa para
morar. Toda a mudança amontoada num canto coberto de lama no acampamento
Santo Dias. Foi assim, com lágrimas e o alívio de que nada de pior aconteceu
com as crianças, que Claudenice e Roberto deixaram o terreno da Volkswagen.
Os dois – que, como outros, não são sem-teto – juntaram a bagagem reunida
nos últimos 19 dias e voltaram para a casa de reboco a 4 quilômetros do
local, onde vivem há oito anos. Decidiram, como a maioria dos invasores, não
seguir com o movimento dos sem-teto. O casal preferiu trilhar seu próprio
rumo.
Às 15h30, quando os líderes dos sem-teto iniciavam uma passeata com cerca de
300 pessoas que restaram do movimento, os dois já haviam retornado a pé para
casa. Improvisado, cheio de coisas para fazer, tudo erguido à base de “troco
de serviço”, mas ainda assim o lar da família. Era o fim de um pesadelo que
começou na véspera, varou a madrugada e deixou abalada a faxineira
desempregada Claudenice do Rosário, de 28 anos. “Diziam que nada ia
acontecer, que tínhamos conquistado algo, mas só vi depois a Tropa de Choque
chegar. A única coisa que pensei era em ir embora.”
A notícia da reintegração de posse foi divulgada anteontem à noite.
Decidiram ficar ao ouvir discursos de “ocupar, construir e resistir”. Mas de
madrugada tentaram sair. Não puderam. De manhã, Claudenice tentou levar os
filhos Dayanne Cristina, de 9 anos, e Jonathan, de 7, para a escola.
Patrícia, de 3, ficaria com o pai. Pediu para os líderes, que novamente os
impediram. A ordem era manter a luta. Quando, horas mais tarde, o movimento
decidiu acatar a ordem judicial, a família de Claudenice sentiu-se
abandonada.
O pedreiro Roberto Aldarilho de Siqueira, de 30 anos, bem que tentara
convencer a mulher a não participar da invasão. No sábado dia 19, após ouvir
pessoas na rua gritando que estavam dando lotes no “terreno da Volks”,
Claudenice decidiu arriscar. Insistiu com o marido e reuniu o restante da
família, a mãe e duas irmãs, o irmão e a cunhada, o pai e outros dois
irmãos. Todos obtiveram uma barraca de lona. A de Claudenice e Roberto era a
G15-B54. Ficava no meio da poeira e da lama. Lá só almoçavam. Pior do que na
casa deles.
“Por que decidimos arriscar? Para ter um lugar seguro para morar”, disse
Roberto. Pedreiro que vive dos bicos que aparecem, ele queria se livrar de
um drama: um duto de óleo que rasga o chão da cozinha. Sua rua, a Padre Léo
Comissário, é mais conhecida como Oleoduto. Vivem lá porque o sogro de
Claudenice cedeu 15 metros quadrados e Roberto ergueu uma casinha de três
cômodos. O terreno, contudo, não tem situação regularizada. Virou um
aglomerado de casas e barracos depois que muitos moradores foram
transferidos pela prefeitura de São Bernardo do Campo, num ano em que muitos
barrancos ameaçavam barracos de um morro vizinho.
A casa da família é um projeto inacabado. Tudo é erguido com a boa vontade
de terceiros. Roberto sempre consegue um punhado de tijolos nas construções.
Lembra com alegria quando recebeu 100 blocos, 2 sacos de cimento e 1 metro
cúbico de areia de uma generosa mulher. As duas janelas de vidro que destoam
do resto da casa também foram doadas. O piso do banheiro foi assentado em
diagonal, porque o pedreiro acha “bonito, apesar do trabalho que dá”.
Algumas paredes são de madeirite. A divisória entre os quartos é feita por
um armário, uma de suas poucas aquisições no crediário.
Centavos – Só que a renda familiar vive em eterna instabilidade. Atualmente,
os serviços de construção civil estão cada vez mais escassos. Ontem, o único
R$ 1,00 que havia na casa era de uma pipa que ele conseguiu vender. Mas
dessa quantia fica com 30 centavos – o restante é da cunhada, que faz os
brinquedos. Com o dinheiro escasso, não dá nem para ele comprar combustível
para o Monza 1984. O carro está parado há mais de uma semana.
Paulistas, os dois se conheceram quando crianças. Ambos trabalhavam com os
pais numa olaria, fazendo e carregando tijolos. Ela nunca teve carteira de
trabalho assinada. Ele, só uma vez, por dez meses, ensacando carvão. Mesmo
com dois filhos estudando, não recebem bolsa-escola. Ontem na geladeira, só
havia água, gordura e frango. Na despensa, arroz e feijão. Mas o telhado
Brasilit era melhor do que o sofrimento do acampamento. “Aprendi: dizem que
favela é ruim, mas quem faz o lugar é a gente”, desabafa Roberto.

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