Publicada em 15 de fevereiro de 2009
O Estado de S. Paulo
A Cantareira é a Amazônia paulista. A mata atlântica vai virando carvão para pizzarias e caldeiras, vendida a preços módicos. Os angicos, os manacás, os jerivás e outras árvores nativas valem menos do que o eucalipto. Ironia. Aos poucos, donos de terra substituem a floresta pela espécie exótica. Se são flagrados cometendo esse crime, a pena vai de uma advertência a 3 anos de prisão – invariavelmente substituída por cestas básicas ou serviços à comunidade.
É o que deve ocorrer com João Cardoso, de 75 anos e dono de 157.300 mil metros quadrados na zona rural de Mairiporã. Há menos de um ano, ele iniciou o corte da mata atlântica. Plantou primeiro um milharal e em volta dele pés de eucalipto. Na sexta-feira, o tenente Emerson Anderson di Francesco, da Polícia Ambiental, e sua equipe flagraram o crime ambiental. Cerca de 30 mil m² de mata nativa haviam sido cortados. “O mato fica aqui, cai o pau, apodrece e não serve para nada. O eucalipto, eu corto e levo na firma para ganhar um dinheiro”, explica Cardoso. A propriedade foi embargada, uma vez que não havia licença para fazer o corte.
O exemplo ilustra uma das ameaças da Serra da Cantareira. Ao contrário dos latifúndios amazônicos, a mata atlântica sofre pressões diárias e imperceptíveis para os satélites. Não fosse por uma denúncia, a Polícia Ambiental teria pouco que fazer quando os eucaliptos tivessem um ano de idade, como nos terrenos vizinhos. O crime estaria consumado.
O avanço da ocupação humana se processa lentamente. Mas a substituição da mata nativa por eucalipto não é o único crime. Moradores denunciam o uso de estradas dentro do Parque da Serra da Cantareira para desova de corpos, depósito de lixo e entulho, loteamentos falidos ou incompletos no entorno, a insegurança na região e, de forma unânime, a falta de fiscalização.
CORTE SILENCIOSO
Desde 2003, quando Ivone Christofero Felix Pires, na época só “cidadã” e hoje presidente da Associação Cultural e Ambiental Chico Mendes de Guarulhos, denunciou no Ministério Público um desmatamento na Cantareira, a mata atlântica do lugar virou aterro. Com autorização da Cetesb e da prefeitura. “Ninguém fez nada, enquanto eles acabavam de aterrar a mata e a represa que tinha lá”, explica Ivone. Quem passa pelas Estradas do Cabuçu e do Morro do Sabão ignora que um crime ambiental foi cometido na Fazenda Três Marias. Nem mesmo os moradores puderam notar qualquer diferença na paisagem. Mas havia os caminhões. Vinham carregados de areia, lama, terra e outros resíduos sólidos. Houve dias em que mais de 400 caminhões transitavam por ali.
Moradores do Cabuçu, que sofrem com a falta de água, passaram a investigar por que a represa secou. E foi assim que descobriram que os antigos donos do terreno cederam o local para receber, entre outros, resíduos do projeto Calha do Tietê. O Departamento de Águas e Energia Elétrica nega e informa que o material do rio foi enviado para aterros licenciados. A prefeitura de Guarulhos interditou o aterro em 2007 e diz que só foram cortados eucaliptos. Ivone garante a informação, mas admite que ela e os moradores serão mais uma vez ignorados. “Nunca fomos ouvidos para mostrar a destruição que ocorreu.” A Fundação SOS Mata Atlântica só notou algo de diferente quando comparou as imagens de 2005 com as de 2008. A cobertura vegetal do local tinha sido, de fato, suprimida.
Para barrar destruição, força-tarefa e novo parque
O plano de proteção ambiental na região da Cantareira está pronto. Prefeitos de nove cidades vão conhecer nesta semana os detalhes das ações e medidas que a reportagem do Estado antecipa agora. Ainda neste ano será criado um novo parque estadual, de cerca de 1,74 milhão de metros quadrados (174 hectares), tamanho equivalente ao do Horto Florestal, na zona norte. A localização foi escolhida segundo indicações do Programa Biota, da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, por se tratar de uma faixa de mata atlântica preservada e de grande biodiversidade. O endereço não pode ser divulgado para evitar que especuladores imobiliários cheguem antes e tumultuem o processo de criação da unidade de conservação.
Faz sentido o zelo da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) em não antecipar onde será o novo parque. A Serra da Cantareira, a maior floresta urbana do mundo, com 7.900 hectares (2,4 florestas da Tijuca), está sob ameaça de loteamentos regulares e irregulares, do desmatamento, das pedreiras, dos bota-foras de lixos urbanos e até da criação de animais. Depois de dedicar atenção a dois outros importantes reservatórios de água de São Paulo, a Billings e a Guarapiranga, a Sema iniciará uma força-tarefa na Cantareira. Um polígono de 78.689,36 hectares, que inclui a zona de amortecimento do parque estadual, será alvo de uma fiscalização sistemática.
Helicópteros da Polícia Ambiental farão sobrevoos quinzenais de uma hora e meia na área que foi dividida no mapa em quatro setores. Dentro das aeronaves, técnicos confrontarão imagens de satélite com o que veem no solo. Se houver alteração, o ponto será marcado no aparelho de GPS. Com as coordenadas, equipes no solo poderão verificar a ocorrência. Para evitar que desmatamentos autorizados cortem mata nativa além do permitido, esses pontos também serão acompanhados de perto. Assim como as áreas que devem ser mantidas intactas, segundo o licenciamento da Sema.
De posse das coordenadas, os técnicos da Sema e policiais ambientais poderão montar um banco de dados que auxiliará no acompanhamento da área. O projeto batizado de Olhos de Águia permitirá que um dono de terra seja autuado mesmo sem o flagrante em solo. Uma mudança nos pontos já georreferenciados constatada no sobrevoo servirá de prova.
No total, 32 policiais militares participarão das blitze a serem feitas nas estradas da região, com bloqueios para coibir transporte irregular de madeira e despejo de caçambas. Até lojas de material de construção serão acompanhadas. Pela experiência na Guarapiranga, esses locais servem como bons indicadores de onde pode estar ocorrendo novas ocupações em loteamentos clandestinos ou regulares.
‘Queremos criar barreiras’
O secretário estadual de Meio Ambiente, Xico Graziano, lembra que a ocupação da região da Cantareira é diferente da que ocorreu nas Represas Billings e do Guarapiranga, mas merece atenção porque a mancha urbana cresce naquela direção. “Queremos criar barreiras físicas, cercamentos ou muros, em algumas áreas de maior fragilidade.” As frentes de expansão serão monitoradas e as prefeituras precisam auxiliar na contenção da expansão urbana descontrolada, acrescentou. “Estamos, até mesmo, com a hipótese de propor uma lei estadual da mata atlântica para os remanescentes da região metropolitana.” A ideia é uma legislação mais rigorosa para permitir preservar a floresta nativa, sobretudo nos mananciais. “Daqui a dez dias vou levar para o governador José Serra uma proposta de trabalho, onde vou assegurar que o desmatamento irregular não vai mais acontecer.”
As casas esparsas que deram lugar a bairros
Vistos do alto, o Jardim Peri Alto e o Parque Serra da Cantareira estão separados apenas por um curso d’água. E nas duas margens do Córrego do Bispo há barracos de madeira ou alvenaria. De um lado e de outro, as construções estão irregulares. O poder público e os moradores sabem disso. É a cidade devorando a mata.
A zona norte de São Paulo avançou tangenciando a Cantareira. Loteamentos irregulares foram se expandindo e ganhando a consistência de bairros. Os Jardins Peri Alto, Antártica e Santa Cruz servem de exemplo. Começaram com barracos como o de Renilda de Almeida Silva, que contava nos dedos os quatro vizinhos que tinha 20 anos atrás. Eram casas esparsas, no meio da imensidão da mata atlântica. Mas em questão de meses já havia cem famílias, que foram trazendo as mudanças com a notícia de um lugar bom, barato e bonito.
Hoje, são 2.500 famílias nesses três bairros, 900 delas ameaçadas de despejo. Decreto de 2007, o 48.585, transforma uma área de 1,2 milhão de metros quadrados em utilidade pública. A Prefeitura pretende construir um parque linear. Será plantado um viveiro na faixa de 15 metros de cada uma das margens do Córrego do Bispo. O objetivo é frear a expansão da cidade e criar uma barreira de proteção da Serra da Cantareira.
“Poderiam preservar a mata, mas pensar também no povo, que não tem lugar para ir. Onde vou com R$ 5 mil?”, questiona Renilda, de 52 anos. Pelo barraco ao lado do córrego, ela pagou R$ 4.500. Seu filho ganha R$ 400 e ela outros R$ 100 para tomar conta de um bebê de vizinhos. Aldinéia de Almeida é presidente da Associação Ação Comunitária do Jardim Antártica. “A única coisa que fizeram foi prometer 200 apartamentos para esse povo morar, mas isso é mentira.” E.N.
Loteamento clandestino está perto da regularização
Próximo do Parque Estadual da Serra da Cantareira fica um loteamento clandestino prestes a virar bairro regularizado pela Prefeitura, depois de 15 anos. Os primeiros moradores compraram pequenos lotes e depois
descobriram que haviam sido enganados. Daí descambou para as invasões. E, em seguida, vieram as constantes ameaças de reintegração de posse. Até que em 1997 eles se organizaram na Associação Amigos do Jardim Paraná, hoje presidida por Antonio Calisto, de 52 anos. Em 2000, decidiram comprar a gleba de 193 mil metros quadrados por R$ 2 milhões, parcelados em 10 anos.
“Depois do acordo que fizemos, nenhuma nova invasão foi incentivada”, diz Calisto. Água e luz já estão regularizadas, 12 ruas já foram autorizadas e há obras visíveis da Prefeitura no local. Hoje, 8.600 moradores sabem que o direito de moradia não é incompatível com o dever da preservação. Tanto que eles decidiram manter os 50 mil metros quadrados colados ao parque estadual intactos. “Todos os dias ofereço esse terreno para que o governo ou uma ONG transforme num parque. Se não fosse por nós, as casas já teriam invadido a
Cantareira.”
E é exatamente o que está acontecendo no Jardim Nova Esperança. Uma escola da Prefeitura, o CEU da Paz, divide os dois bairros. Em 2005, o então prefeito José Serra visitou o local com o governador Geraldo Alckmin. Nos fundos da escola, viram um terreno já aberto, com lotes demarcados no chão. Alckmin comentou com o colega. “Como é organizado aqui. Devem contar com um engenheiro”, ironizou.
Hoje, os alunos convivem com as constantes marteladas assentando os barracos de madeira e os blocos de concreto. Tudo em construção. Nas imagens de satélite, a mancha urbana tinge mais um ponto vermelho no que antes era só verde. E.N.
‘Esse plano não pode ser só anúncio’
“Esse plano de fiscalização não pode ser só um anúncio, mas uma rotina e com o compromisso de continuidade”, diz Márcia Hirota, diretora da Fundação SOS Mata Atlântica. Ambientalista com 15 anos de experiência no mapeamento de remanescentes, ela aplaude as medidas que o governo estadual adotará, incluindo a criação de um novo parque e o aumento no rigor da fiscalização. “Não podemos permitir que novos desmatamentos venham a ocorrer e não devemos ficar correndo atrás dos pontos que já foram desmatados, mas daqueles que ainda estão ameaçados.”
Segundo Márcia, por muito tempo São Paulo foi pioneiro em políticas ambientais, mas ultimamente perdeu a vanguarda na área. A criação de novas unidades de conservação é fundamental para o Estado reassumir esse papel, pois sinaliza que áreas remanescentes bem conservadas ganharão proteção. “A presença do poder público impede que novos desmatamentos aconteçam.” Ela cobra, contudo, que o Estado promova educação ambiental. “Se a pessoa não sabe que aquele parque é dela, se pensa que é do governo, ela não cuida”, diz.
A SOS Mata Atlântica será convidada a participar dos sobrevoos na Operação Olhos de Águia. Segundo Márcia Hirota, eles serão importantes porque permitirão combater até os desmatamentos menores. A organização não-governamental mapeou 21 pontos em que houve aumento do corte ilegal nos últimos três anos e a região da Cantareira que concentrou o desmate. Já a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) garante que não houve desmatamento significativo e recente nos 21 pontos. Os técnicos compararam as imagens atuais da Cantareira e do entorno com as tiradas em 2002 pelo satélite Ikonos. Percebeu que em 11 pontos já havia desmate. A Polícia Ambiental foi a campo averiguar o que teria ocorrido nos polígonos apontados pelo Inpe e pela SOS Mata Atlântica. Confirmou que os 11 pontos possuíam cortes anteriores a 2005. E descobriu que em dois polígonos havia licenciamentos autorizados e em outros dois a vegetação estava até mais desenvolvida. Nos últimos seis, encontrou indícios de desmatamento, porém já havia plantações de eucalipto.
“Quem não conhece e vê pensa que é um desmatamento”, diz o capitão Raimundo Ferreira Filho, da Polícia Ambiental. “Mas vimos que não eram significativos ou eram cortes mais antigos.” O Estado verificou, no entanto, que houve supressão recente de mata nativa em três desses pontos, dois em Mairiporã e no aterro do Cabuçu, em Guarulhos.