Publicada em 24 de agosto de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Ministros e secretários do alto escalão do governo vêm discutindo como um
segredo de Estado os principais projetos que farão parte do Plano Plurianual
(PPA) 2004-2007. Entre eles, as grandes obras de infra-estrutura para todo o
País. O Estado obteve com exclusividade a lista atualmente em análise para a
região amazônica. São rodovias, hidrovias, usinas hidrelétricas, gasodutos e
linhões de transmissão de energia. Algumas já causavam arrepios em
ambientalistas desde a época em que constavam do plano do governo anterior,
o Avança Brasil. Outras, por serem novas, nem sequer têm estudos de
viabilidade econômica e socioambiental.
O Plano Brasil para Todos, nome de batismo do novo PPA, prevê investimentos
de R$ 191,4 bilhões para o período 2004 a 2007. Pelo menos R$ 13 bilhões
podem ser destinados para a construção de duas hidrelétricas, as de Jirau e
Santo Antônio. Juntas, terão capacidade de gerar 7.500 megawatts. Só que
antes de serem capazes de acender uma simples lâmpada representarão o
alagamento de 500 quilômetros quadrados de terra firme ou várzea em Rondônia.
As usinas implicariam ainda a construção da Hidrovia Guaporé-Madeira, na
divisa do Estado com a Bolívia. Pelo projeto apresentado pelas Furnas
Centrais Elétricas e construtora Odebrecht, o canal de navegação de R$ 11
bilhões terá uma extensão de 4.220 quilômetros e transformará a região no
“grande celeiro do mundo”. É uma ampliação da produção de soja Amazônia
adentro. Serão mais de 80 mil quilômetros quadrados de cultivo e uma
previsão de produção de 28 milhões de toneladas de grãos, que inclui também
milho, arroz e algodão.
Impacto – No Pará, outra obra prevista é a Usina Belo Monte. É um dos
projetos mais polêmicos e recebeu uma série de contestações, inclusive na
Justiça, desde sua concepção no governo José Sarney. Para minimizar seu
impacto e mostrar sua viabilidade econômica, o governo de Fernando Henrique
Cardoso sinalizou com a construção de uma usina térmica complementar em
Belém ou Altamira – Belo Monte, nos períodos de estiagem do Rio Xingu,
poderia produzir 40% de sua capacidade total. Na nova versão do PPA, não se
fala mais na usina térmica. Críticos acreditam que isso pode representar a
construção de barragens pequenas, mas potencialmente destrutivas, ao longo
do Rio Xingu. O custo: R$ 7 bilhões.
Estratégica, a Rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163) pode finalmente ser
asfaltada. Se isso acontecer, vai se transformar num importante corredor de
exportação de soja do Mato Grosso para os mercados europeu e americano.
Hoje, sem essa possibilidade, os produtores têm de transportar os grãos a
partir dos portos da Região Sudeste. Pelo Norte, o caminho se torna mais
curto. O Grupo Maggi e a Cargill já manifestaram ao governo interesse em
patrocinar a conclusão dessa estrada.
O problema, contudo, é que a BR-163 se tornou num dos mais graves exemplos
de ocupação descontrolada da região. Só pelo fato de ter sido anunciada como
uma obra estratégica, tornou-se alvo preferencial de grileiros e
especuladores. Sem que houvesse uma regularização fundiária em seu entorno,
viu nos últimos anos a floresta ser derrubada por madeireiros e o gado tomar
conta do pasto que ficou – estudo recém-publicado indica que 80% da área
agrícola legal da Amazônia é baseada na pecuária.
Esse tipo de ocupação só é possível porque 47% da região amazônica não tem
dono, são terras devolutas. Com essa brecha, invasores e até populações
pobres de outros Estados migram para a Amazônia em busca de algum lucro
assim que os tratores iniciem suas atividades. No mínimo, serão
desapropriados oficialmente. Enquanto isso não ocorre, transformam-se num
problema social no meio da selva, já que vivem sem escolas, postos de saúde
ou qualquer tipo de assistência.
Outras estradas do novo PPA devem provocar polêmica, como a Porto
Velho-Manaus (BR-319). Há dúvidas quanto à sua viabilidade econômica, pela
topografia acidentada ao longo de seu percurso. A BR-364, de Sena Madureira
a Cruzeiro do Sul, no Acre, já conta com financiamento externo, desde que
seja construída segundo o princípio de estrada verde. Ou seja, no seu
entorno, deve haver um cinturão de proteção com florestas e unidades de
conservação para evitar a especulação fundiária. O governo estadual já se
comprometeu a seguir essa regra. Já a BR-317 ligará Rio Branco até Boca do
Acre, no Amazonas. Atenderá aos pedidos de pecuaristas no Vale do Rio Branco
(AM).
Árvores – Em Roraima, onde mais da metade de seu território é formado de
unidades de conservação ou terras indígenas, está prevista pelo PPA a
construção da Rodovia Bonfim-Normandia (BR-401). É parte de um projeto
maior: a estrada que ligará Boa Vista a Georgetown, capital da Guiana. No
Estado brasileiro, está em construção uma grande fábrica de celulose, que
deve ser abastecida com acácias australianas. Essas árvores estão sendo
cultivadas com sucesso em áreas não-protegidas há cerca de dois anos.
A fábrica exigirá a construção de uma grande matriz energética. Já existe
financiamento para a elaboração de um projeto para todo esse pacote de
obras. Na região, fala-se em investimentos de US$ 50 bilhões para Brasil e
Guiana. Uma das críticas que se faz é em relação à prioridade que se dará ao
projeto, enquanto não se resolve o problema das demarcações de terras
indígenas, mais exatamente Raposa Serra do Sol. Trata-se de uma imensa área
de conflito entre índios e rizicultores, que não querem sair do território
já demarcado, mas não-homologado.
Duas outras rodovias do novo PPA já estavam presentes no plano anterior. Uma
é a Marabá-Altamira (BR-230), trecho da Transamazônica no Pará, e a outra é
a Ferreira Gomes-Oiapoque, no Amapá. Para nenhuma das estradas houve
previsão de recursos necessários à construção.
No item geração de energia, o Plano Brasil para Todos em estudo prevê a
construção de dois gasodutos, Urucu-Porto Velho e Coari-Manaus. A
continuação do projeto de gás passando por Urucu, no Amazonas, é um velho
desejo dos políticos da região, mas uma preocupação para a sociedade civil
organizada. Em audiências públicas, foram discutidas medidas que qualquer
governo deveria adotar caso quisesse levar a obra adiante: demarcação prévia
das terras indígenas e ocupadas por posseiros, criação de projetos de
desenvolvimento sustentável e unidades de conservação para as comunidades
locais.
Na região, o PPA prevê ainda a construção de três linhões de transmissão de
energia no meio da floresta. Uma levaria luz elétrica de Jauru (MT) a
Ji-Paraná (RO), onde há um grande pólo de exploração madeireira. A outra vai
de Vitória do Xingu, onde fica a Usina de Belo Monte, a Macapá, capital do
Amapá. A terceira seria a mais complexa, a de Santarém (PA) a Manaus.
Prazo – O martelo deve ser batido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva
antes do dia 31. É o prazo que ele tem para decidir quais desses projetos
serão mantidos na versão final e enviados ao Congresso. A partir daí, será
dada a largada para uma série de discussões entre governo e sociedade civil
que se estenderá até o fim do ano. O fato de uma obra estar presente no PPA
não implica que será realizada. Tudo dependerá de recursos bilionários. O
governo Lula já indicou que será necessário atrair financiamentos do setor
privado.
Para especialistas, o que está em jogo é o modelo da Amazônia que se quer
para o País. A maioria das obras acima atende aos interesses dos Ministérios
da Integração Nacional, das Minas e Energia, dos Transportes e da
Agricultura. O do Meio Ambiente, nessa atual fase de discussão, está
analisando o impacto que cada uma delas terá na região.
Ambientalistas pedem medidas preventivas
Ambientalistas dão um voto de confiança ao novo Plano Plurianual em
discussão. Sabem que algumas das grandes obras de infra-estrutura para a
região amazônica são inevitáveis diante da pressão política-econômica. Mas
pretendem que, pela primeira vez, sejam criados mecanismos para evitar a
formação de uma lógica perversa sempre que são anunciados projetos para a
região. É quase uma regra: antes da chegada dos tratores, surgem os
madeireiros, os grileiros, os posseiros. “Na Amazônia, nada é trivial e os
erros são na mesma escala”, adverte o coordenador de pesquisas da entidade
Imazon, Adalberto Veríssimo.
Os ambientalistas defendem que o governo faça o mais breve possível a
regularização fundiária da região. Essa medida serviria para evitar o
desmatamento desenfreado e a ocupação irregular que costuma ocorrer nas
áreas próximas às obras anunciadas. Roberto Smeraldi, diretor da Amigos da
Terra, afirma que o governo deve fazer um grande levantamento por prevenção
e não conceder novos títulos de propriedade de terras.
Outra proposta defendida por Smeraldi, um dos autores do estudo do Grupo de
Assessoria Internacional que condenou as grandes obras de infra-estrutura
programadas para a região, é que o governo estimasse antes o real custo
desses projetos. Ou seja, para obter o desenvolvimento sustentável, deve-se
levar em conta que serão criadas novas cidades, novos aglomerados
populacionais, e estes precisarão de educação, saúde, segurança, transporte
e justiça. “É preciso cobrir esses custos para saber se valem a pena esses
investimentos.”
Compensação – Veríssimo pôs em dúvida a viabilidade de alguns projetos que
podem ser anunciados no novo PPA. Entre eles, a Rodovia Porto Velho-Manaus,
por ser uma obra de engenharia cara. Diz que já esperava a inclusão da Usina
de Belo Monte, no Pará, mas cobra do governo a criação de condições
socioambientais para as populações que serão afetadas e a redução dos danos
na natureza. “Por enquanto, o governo atual e o anterior vêm assistindo ao
que ocorre no local de braços cruzados”, diz, em referência à especulação
fundiária no entorno de Vitória do Xingu.
A assessora de Políticas Públicas do Instituto Socioambiental, Adriana
Ramos, define o novo PPA, segundo as obras em estudo, como um projeto de
“desenvolvimento mais ousado que o Avança Brasil” e cujas intervenções podem
alterar significativamente a Amazônia. “No caso da Rodovia Cuiabá-Santarém,
já há uma especulação de um movimento que está à frente do governo. Se ele
não chegar, o asfalto da BR-163 pode ser um vetor de desmatamento
descontrolado.” Adriana afirma que são vitais projetos paralelos, de
incentivo à agricultura familiar e o agroextrativismo, para absorver o
impacto causado pelas obras.
Para a coordenadora da Associação Brasileira de Organizações
Não-Governamentais, Aldalice Otterloo, que há duas semanas entregou o
relatório com o resultado dos 27 fóruns estaduais ao Ministério do
Planejamento, o governo permitiu que a sociedade discutisse o PPA no nível
mais teórico. Indagada sobre a hipótese de a Usina de Belo Monte estar
presente na lista final, ela reage: “Vai ter quebra-quebra, um levante. São
13 municípios da região e 15 comunidades indígenas contra. Não é possível
que o governo não tenha sensibilidade para ouvir essas vozes.”