Eles ainda sonham em mudar o mundo

0
313

Publicada em 7 de setembro de 2003
O Estado de S. Paulo

ADRIANA CARRANCA
e EDUARDO NUNOMURA
Muitos pais devem estar se perguntado: será que meu filho pode fugir de
casa? É uma dúvida compreensível. O estudante carioca Alexandre de Donato,
de 14 anos, fez isso. Deixou com um amigo uma carta para os pais dizendo que
iria abrir “fogo contra o inimigo”. Era a senha para o desejo de se unir às
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A mãe ficou perplexa.
Será a rebeldia juvenil capaz de fazer um adolescente abandonar a família e
os amigos? O que querem os jovens afinal?
Uma forma de compreender o que os adolescentes desejam com atos como o de
Alexandre é ouvi-los. Eles sabem o que é ter uma causa para lutar. Ou não
ter uma. Ou ter várias. Oito jovens de 14 a 17 anos, de diferentes perfis e
classes sociais, aceitaram o desafio de falar do estudante carioca e deles
mesmos. Mediado pela psicóloga Leila Salomão Tardivo, da Universidade São
Paulo (USP), o debate promovido pelo Estado mostrou que o fugitivo teve lá
suas razões. Se em vez de um bate-papo informal, os jovens fizessem parte de
um júri, Alexandre teria sido absolvido. Eles tecem críticas, mas também
encontram justificativas para a atitude aventureira do garoto.
“Se é uma coisa em que ele acredita, tinha de lutar. Só não acho que fugir é
um jeito bom de resolver a questão. Ele tinha uma vida boa em casa, ia até a
um psicólogo”, comentou Silvana Forsait, de 16 anos, aluna do Colégio Dante
Alighieri. “Mas ter uma vida boa para ele pode não ser ir para a escola, ter
amigos, ter dinheiro. Talvez o ideal dele seja mudar o mundo.”
“Não adianta nada ter essa mordomia, carro, computador, tudo o que meu pai
pode dar, se não tenho o amor e a opinião dele”, acrescentou Bruno Ramos da
Silva, de 16, da Escola Estadual Amadeu Amaral. “Esse negócio das Farc pode
ter entrado como um pontinho e foi evoluindo até que num ponto ele falou: ‘É
isso que eu quero’”, acredita Camilo Bousquat Árabe, de 14 anos, da Escola
da Vila. (Veja na página 3 o que pensam os jovens).
A vontade de mudar o mundo é comum a todo adolescente, segundo a psiquiatra
Sandra Schivoleto, do ambulatório de adolescentes e drogas do Instituto de
Psiquiatria da Universidade São Paulo. “A adolescência é uma fase em que o
jovem tem de ser idealista, acreditar em alguma coisa. É quando ele deixa de
ser filho de um casal para ser ele próprio. É como montar um quebra-cabeças.
Ele pega peças do ambiente em que vive, entre causas, crenças, formas de se
vestir, de agir e vai experimentando para ver se encaixa”, diz a
especialista. “Se essa energia é canalizada para ações produtivas, os
resultados são muito positivos.”
Para a socióloga Maria Virgínia de Freitas, coordenadora do Programa
Juventude, da organização não-governamental Ação Educativa – que defende os
direitos à educação – as instituições de ensino deveriam ser catalisadoras
desse potencial dos jovens. A escola foi o alvo da maioria das críticas
feitas pelos adolescentes, principalmente quanto à falta de diálogo e de
entendimento de professores em relação à importância de atividades ligadas a
uma causa ou ideal, fora da sala de aula.
“A escola não está pensada como espaço para a criação de referências. Está
presa a um modelo antigo, voltado para o vestibular, para o mercado de
trabalho. Apesar de ser fundamental, ela não é um espaço de realização”, diz
Maria Virgínia. Segundo ela, no entanto, essa realização acontece “apesar da
escola” e as formas de intervenção social são mais diversificadas hoje do
que nos de movimentos estudantis.
Participação – “O desejo de transformação, de influir dos destinos do mundo,
é mais difuso. Ele acontece de outras formas que não apenas sair em
passeatas pelas ruas. Agora, a efervescência é a mesma”, diz Maria Virgínia.
“O congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) reuniu este ano 10 mil
jovens. Em Salvador, estudantes tomaram as ruas na semana passada contra o
aumento da tarifa dos ônibus. O hip hop, nas periferias, é mais do que
cultura, é um movimento social. Há jovens no MST, nas pastorais, no
Movimento dos Sem-Teto.”
Em uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, com 1.806 pessoas de
15 a 24 anos, em nove regiões metropolitanas do País, mais de 80%
responderam que são capazes de mudar muito ou um pouco o mundo e 22%
declararam estar trabalhando ativamente para isso, como integrantes de
grupos em suas comunidades.
“A pesquisa demonstra claramente que os jovens não estão alienados. Quando
perguntamos a eles o que fariam para mudar o mundo, tivemos como resposta um
conjunto de ideais bastante ambiciosos. Essa pode não ser uma juventude
organizada, mas você identifica nela antigos ideais de liberdade e igualdade
renovados”, diz o sociólogo Gustavo Venturi.
Outra grande pesquisa, o Mapa da Juventude, feita com 2.260 jovens
paulistanos de 15 a 24 anos, demonstrou que há um grande interesse deles por
atividades sociais. Foram identificados 1.609 grupos na cidade, que contam
com a participação de 310 mil crianças e adolescentes. Para o coordenador da
Juventude da Prefeitura, Alexandre Youssef, a juventude está longe de ser
apática. “Há uma clara influência da situação social, das zonas em que
vivem. Um exemplo é o movimento hip hop na periferia: é como se fosse o 1968
(das lutas estudantis) de 2003. É a maneira como se expressam para mudar a
sociedade desigual”, compara.

O que falta para a juventude hoje?
Oito jovens reunidos durante 90 minutos. Tempo suficiente para perceber a
diversidade de opiniões, ideais e projetos de vida. No fim dos anos 60, a
juventude erguia a bandeira da liberdade. Hoje, num mundo de idéias
políticas e comportamentais mais difusas, as bandeiras podem ser várias,
pautadas por temas como educação, emprego, violência e desigualdade social,
só para citar alguns. Na semana passada, o Estado promoveu o encontro dessa
galera. Galera de tribos diferentes. Tribos de realidades distintas. Em
comum, o desejo de mudar.
São jovens com histórias. Isis Lima Soares, de 16 anos, acaba de voltar do
Marrocos, onde representou o Brasil numa conferência da juventude sobre
desenvolvimento sustentável. Há oito anos, fundou a ONG Cala Boca Já Morreu,
para dar voz a crianças e adolescentes. Dois anos mais novo, Paulo Luiz
Souto e Silva Filho também já viajou o mundo representando o País. É
“atleta” da CyberGames e disputa campeonatos de jogos eletrônicos. Diego
Andrade da Silva, de 16, integra o grupo de hip hop Banca dos Loucos. Mora
na periferia da zona sul e ajuda a mãe no orçamento com o Bolsa-Escola.
Bruno Ramos da Silva, de 16, é aprendiz na Companhia Metropolitana de
Habitação e, nos fins de semana, entrega pizza. Auxilia jovens em situação
de risco no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, no Belém.
Camilo Bousquat Árabe, de 14 anos, é engajado em projetos sociais
desenvolvidos pela escola e faz parte do Fórum da Criança e do Adolescente
do Butantã. Silvana Forsait, de 16, faz parte do movimento juvenil judaico,
que desenvolve atividades de lazer e educação para crianças e adolescentes.
Angélica dos Santos, de 14, freqüenta as missas dominicais e participa de um
grupo de jovens na Igreja São José Operários. Faz parte do Arrastão –
Movimento de Promoção Humana. Aline Mastromauro, de 17, é filiada à União da
Juventude Socialista e ao PC do B. Já sonha com uma vida política.
ENGAJAMENTO
Isis – Falta muita informação para os jovens. Você percebe que eles não
sabem de muita coisa, não participam de projetos nem sabem o que está
acontecendo. Quando têm acesso, é muito superficial. Se soubessem mais sobre
seu País, cidade, bairro em que vivem desde que nasceram, eles se
envolveriam muito mais.
Silvana – Não é que falta acesso à informação. A gente tem jornal, revista,
internet e televisão. Só que você tem de saber escolher sua fonte. Agora,
ninguém ganha informação sem querer ter informação.
Bruno – É preciso montar mais projetos, dar mais empregos porque muitos
jovens estão querendo trabalhar e, se não conseguem, vão fazer coisa errada,
querer ganhar a vida fácil, a chamada vida louca.
Aline – O que está faltando para a juventude hoje? É começar a perceber a
questão de sua americanização hoje. O pessoal só quer saber de Back Street
Boys, Spice Girls, não quer entender o que é o Brasil, nem ouvir Gilberto
Gil, Caetano Veloso. Aí, ele acaba se perdendo, fugindo da nossa realidade.
Temos de parar para pensar o que está errado não só para gente, mas para a
juventude.
ESCOLA
Diego – Quando chego na escola, não me sinto bem porque as cadeiras são
todas quebradas. É a maior zona, tem professor que chega e fica conversando
com os alunos e não dá matéria. Quando um aluno quer ir embora ele deixa e
ainda dá presença. O diretor não tem nem coragem de aparecer.
Isis – Desde os 8 anos, já passei por quatro escolas. Nenhuma delas
conseguiu entender o que eu faço fora da escola, no (projeto) Cala Boca Já
Morreu. Se a gente passa 11 anos numa escola e ela não entende que se
aprende fora dela, desestimula, cansa, chateia. Lá é obrigado a sentar um
atrás do outro, olhando para a nuca da pessoa que está na frente e nunca nos
olhos. Não há diálogo.
Angélica – Na minha, os professores são muito distantes do aluno. Tem vezes
que a gente fica lá olhando um para a cara do outro. Não estou sendo
preparada para muita coisa.
Camilo – Se não fosse minha escola, eu não tinha cabeça. Ela me formou desde
que tinha 3 anos e não é só matéria. Não é só vestibular. Tem de tudo, tem
trabalho de projeto social, esporte, lazer. A escola me ensina a ver melhor
as coisas.
MERCADO DE TABALHO
Paulo – Se eu for arrumar um trabalho e na hora da entrevista disser que
viajei para o exterior para jogar (videogame), aí o cara vai dizer “e…”.
Então, tenho de parar e pensar que o cara não vai me dar um emprego porque
não estudei, só fiquei no jogo. Se não pensar no que vou fazer na
universidade, fica difícil arrumar um emprego.
Silvana – O mercado de trabalho não é imprescindível para o jovem, mas é
para o adulto. Concordo que tem de pensar no hoje, mas tem de viver pensando
no amanhã. Se não agir assim, vai ser muito difícil conseguir seu emprego.
Aline – A universidade não deve servir só para o mercado de trabalho, mas
para formar cidadão. Como a escola não tem de formar só para o vestibular.
Isis – Se uma escola só forma para o vestibular, então, caramba, o que a
gente está fazendo aqui? Acho que sou mais que um bonequinho que vai
produzir para os outros consumirem. Isso talvez explique a falta de amor a
uma causa. A gente está sempre se formando para o futuro, para o futuro. Pô,
e o agora?
Diego – Para falar a verdade, nunca pensei nessa coisa de vestibular. Penso
na música.
FAMÍLIA
Bruno – O que mais me deixa alegre ao levantar é ver minha mãe sorrindo e me
dar um beijo pra eu ir trabalhar e depois voltar, ver a mesma cara dela e ir
pra escola. Só isso pra me deixar feliz mesmo.
Camilo – Uma das coisas que mais gosto é perceber que tô sentindo saudade,
porque sinto que aquilo tem valor pra mim. O jovem sempre tenta negar, dizer
que não sente saudade dos pais. Numa viagem, cheguei para os meus amigos e
falei: ‘Pô, tô com a maior saudade da minha mãe.’
DROGAS
Paulo – Depende da pessoa. Se um cara chegar oferecendo drogas e a cabeça
dele for bagunçada, ele vai querer. Acho que essas paradas de beber antes
dos 18 não são uma boa.
Bruno – Se a pessoa quiser se envolver, ela se envolve. Dou força pra não
entrar, mas se não adiantar, não sou eu que vou mudar a cabeça da pessoa.
Diego – Lá no meu bairro tem moleque que fuma e a gente fica perto. Eles
ficam dando idéia: ‘Não faz esses negócios aqui que eu sei que o que tô
fazendo é errado.’
Camilo – Tem muito preconceito entre o jovem. O cara pensa: ‘Ali tem
maconha, tem bebida, então, não vou.’ Acho que não pode ter isso. O cara
pode fumar maconha, mas ser um puta de um gente fina, tem muito cara que não
fuma e é folgado ou agressivo.
FUTURO
Bruno – Queria virar presidente, diretor de onde trabalho, a Cohab
(Companhia Metropolitana de Habitação). Me formar engenheiro civil e estar
no cargo dele.
Camilo – Sei lá, independentemente de qual for a escolha, pretendo continuar
a tentar mudar. É muita desigualdade. Aqui temos três situações: tem gente
de escola particular que adora seus colégios e tem de escolas públicas que
falam que escola pública não funciona.
Isis – Não sei dizer o que quero daqui a dez anos, só que em dez anos quero
fazer muitas coisas. Queria muito jornalismo ou relações internacionais.
Quero ter experiência com governo para mudar as políticas públicas para a
juventude.
Aline – Quero fazer jornalismo e pedagogia. Mas quero mesmo é seguir a
carreira política, ser vereadora, depois deputada e por aí…
Paulo – Fazer engenharia da computação, trabalhar no exterior, ajudar a
criar novas tecnologias e ser uma pessoa feliz.
Silvana – Ser oncologista pediátrica. É impossível uma pessoa fazer a
felicidade do mundo, só que ela pode ajudar um pouco, então, quero fazer o
que estiver ao meu alcance.
Angélica – Eu não tenho muita idéia do que vou fazer daqui a dez anos. Gosto
de desenhar… mas o que vier, o que for pra ser…
Diego – Quero estar num show com o meu grupo, com muitas pessoas e que pelo
menos uma delas se conscientize do que eu tô falando. (Adriana Carranca e
Eduardo Nunomura)

Camilo Bousquat Árabe
Engajado em projetos sociais e integrante do Fórum da Criança e do
Adolescente do bairro do Butantã, o garoto, de 14 anos, afirma que não
“teria cabeça” se não fosse sua escola, a Escola da Vila. “Não é só matéria,
vestibular. Tem projeto social, esporte, lazer”, diz ele.
‘ A escola me ensina a ver melhor as coisas. Ela me formou desde que tinha 3 anos
Angélica dos Santos
Angélica é tímida, mas no Arrastão, projeto social do bairro onde mora, o
Campo Limpo, ela se transforma: dança, faz esportes e solta a criatividade
no desenho. Da escola, não gosta. “Não aprendo muito lá.” O que falta ao
jovem? “Fé”, acredita ela, que vai à missa todos os domingos.
Silvana Forsait
Silvana participa do Movimento Juvenil Judaico, é muito ligada à família e
uma das melhores alunas da escola. “Agradeço muito pelas oportunidades que
tenho, pois sei que poucos têm”, diz ela, que quer ser médica. “Os estudos
são o meu ideal. É assim que quero ajudar as pessoas.”
‘Pensar no mercado de trabalho é imprescindível. É a realidade que a gente vive hoje.
Aline Mastromauro
‘O professor dorme tranqüilo, porque passou a matéria. Mas não sabe se os alunos aprenderam
Aos 17 anos, a estudante de Rio Claro já milita na política. Estuda na
Escola Estadual Professor Marciano Toledo Piza, que considera boa para fazer
amizades,mas ruim pelo ensino. Gosta mesmo é de atuar na União da Juventude
Socialista. Sonha em ser vereadora, deputada…
Isis Lima Soares
Com 8 anos, quando ainda brincava de boneca, criou a ONG Cala Boca Já Morreu
– projeto de uma rádio para crianças e adolescentes que continua no ar.
Hoje, aos 14, não encontra entre os professores da Escola Estadual Fernão
Dias Paes compreensão para o que faz fora da sala de aula.
‘Antes de estar ajudando, estou cuidando de mim, amadurecendo a todo momento
Bruno Ramos da Silva
Apesar de ter apenas 16 anos, Bruno estuda, trabalha como aprendiz na Cohab
e, nos fins de semana, entrega pizza. A renda chega a R$ 400,00. Com a
metade, ajuda nas despesas de casa, onde mora com a mãe e quatro irmãos.
“Meu maior presente é acordar de manhã e ver o sorriso da minha mãe.”
‘Tem de ter emprego porque os jovens querem trabalhar. Se não conseguem,
fazem coisa errada
Diego Andrade da Silva
‘O que me faz feliz é poder passar a felicidade para os outros’, costuma
dizer o garoto de 16 anos. Uma das formas é cantando no grupo de hip hop
Banca dos Loucos. Tristeza, contudo, é o que diz encontrar em sua escola, a
estadual Álvaro de Souza Lima. ‘Ali não tem jeito. Por isso fui procurar
outros lugares.’
‘Ganhei R$ 40 na campanha do Lula. Mas ainda não o vi fazendo nada para a
comunidade
Paulo Souto e Silva Filho
Aos 14 anos, seu prazer são os jogos eletrônicos e o futebol. No Instituto
de Arte e Ciência, onde estuda, pode ter uma agenda flexível – já viajou
para representar o Brasil em campeonatos de games. Não se importa com quem o
chama de nerd. ‘Isso está me dando uma direção para o futuro.’
‘Acho difícil viver sem o lado consumista. Se não houvesse, o mundo ia ser devagar

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui