Publicada em 21 de setembro de 2003
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
SALVADOR – A paquistanesa Asma Jahangir, relatora especial da Organização
das Nações Unidas (ONU), já deixou claro que vai citar em seu relatório o
veto que sofreu da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem). Ela não
poderá visitar uma unidade superlotada, a do Brás. “Não foi inteligente
negar a visita”, afirmou. Em entrevista ao Estado, ela defendeu o
desarmamento da população, em discussão no Congresso. Casada e mãe de três
filhos, a pequena ativista de direitos humanos de 1,52 metro é vista como
uma gigante pelas organizações não-governamentais (ONGs) nessa visita ao
Brasil. Ela prefere não criar falsas esperanças.
Estado – A visita de uma relatora da ONU ao Brasil traz muita expectativa,
sobretudo entre as ONGs. O que elas podem esperar de seu relatório?
Asma Jahangir – Isso me preocupa. Em todo o mundo as expectativas são altas,
mas lembro que só trabalhamos sobre ações governamentais. Dependemos da boa
vontade dos governantes. Não podemos ir além disso. Quando um governo nos
convida é porque quer que mudanças sejam feitas. Num país que visitei, a
população acreditava que a polícia matava só criminosos. Mas depois
perceberam que a polícia estava matando cidadãos.
Estado – Como tem sido entrevistar algumas vítimas e testemunhas de
violações aos direitos humanos?
Asma – É muito difícil estar com essas pessoas. Elas querem justiça e só
posso dizer que espero que ela seja feita. É tão duro que, algumas vezes,
acho injusto até falar com elas. Quando tenho encontros individuais e me
perguntam o que posso fazer, apenas digo que vou escrever um relatório. Mas
há recompensas, porque você vê governos adotando mudanças.
Estado – Nos encontros com as autoridades oficiais, como descobre se elas
estão falando a verdade?
Asma – Não tenho um detector de mentiras, mas gostaria de ter. Por outro
lado, se levasse um, alguns encontros me deixariam muito desapontada.
Estado – Como é ser relatora sobre um País que é visto, ao mesmo tempo, como
bonito e violento?
Asma – Vejo o Brasil como um país promissor não só por sua natureza, mas
também pelo jeito de seu povo. Algumas pessoas me pediram que levasse uma
foto ao lado de Lula. Não era por causa do presidente, mas porque vocês
puderam escolhê-lo independente de sua origem. Não esqueçam essa mensagem
que deram ao mundo. Um dos lemas dos anos 60, que dizia que todos poderiam
se tornar presidente um dia, estava começando a morrer. Vocês ressuscitaram
esse sonho.
Estado – O Congresso brasileiro discute políticas para o desarmamento da
população. Leis desse tipo são importantes?
Asma – Extremamente. Conheço muitos países no sul asiático que tentaram leis
parecidas e outros não. Aqueles que não levaram a sério essa questão estão
enfrentando sérios problemas. No meu país, todos têm armas e o resultado é
que há muitas milícias armadas. O governo acaba refém dessas forças.
Estado – O governo paulista vetou sua visita à Unidade de Atendimento
Inicial do Brás. Essa atitude será prejudicial ao Brasil?
Asma – Não foi inteligente negar a visita de um relator especial da ONU.
Simplesmente vou colocar isso no meu relatório. Se tivesse acesso livre,
poderia ver coisas que não aprovo, mas teria uma forma de ajudar dando
recomendações para que a situação fosse melhorada. Presumo que há coisas a
serem escondidas.
Estado – Pobreza, corrupção, impunidade, todos esses problemas estão
interligados. Como começar a solucioná-los?
Asma – O governo brasileiro deve descobrir como desatar esse nó. Não há uma
receita única para isso, mas ela deve ser feita em vários níveis. Mas
algumas mudanças já estão surgindo quando brasileiros, sobretudo os mais
jovens e os que vivem em áreas mais afastadas, estão se levantando e falando
de seus problemas.
Impunidade na Chapada pode virar símbolo
A baiana Neusa da Cruz Brandão, de 37 anos, levava uma vida
humilde e honesta. Ajudava o marido, o agricultor Nilvado Braga de Oliveira,
de 36, em serviços na roça. Ganhavam R$ 5 por dia. No início do ano, ela foi
detida sob acusação de furto. Crime jamais comprovado, mas suficiente para
que ela descobrisse um pedaço do inferno na delegacia de Andaraí, a 417
quilômetros de Salvador, no coração da Chapada Diamantina. Testemunhas
confirmam a versão da vítima: ela foi torturada pela delegada Maria Luiza
Amato de Oliveira e por outras seis pessoas. E o lavrador, espancado até a
morte. Motivo: ele havia levado uma marmita para a mulher presa.
As entidades civis querem transformar esse caso em um novo símbolo da
impunidade no Brasil. Apresentaram Neusa para a relatora da Organização das
Nações Unidas (ONU) Asma Jahangir, em visita ao País, e cobram das
autoridades que os acusados sejam punidos.
O delegado-chefe da Polícia Civil, Jacinto Alberto, reconhece o crime
cometido por seus subordinados. “É uma prova de desvio de conduta. Uma
exceção.” Internamente, há um processo administrativo não concluído contra a
delegada. Na Justiça, ela e os outros policiais respondem pela morte do
lavrador, pelas torturas cometidas contra Neusa e pelos crimes de prisão
ilegal, eliminação de provas, fraude em laudo cadavérico, intimidação de
testemunhas e abuso de poder. “Só peço que se faça justiça. Meu marido foi
morto por nada”, protesta Neusa, que hoje vive em outra cidade com medo de
ameaças.