Publicada em 25 de janeiro de 2004
O Estado de S. Paulo
ANTERO GRECO, EDUARDO NUNOMURA, JOTABÊ MEDEIROS, MARCIA GLOGOWSKI e RENATA GALLO
Se São Paulo fosse um espetáculo, este seria uma epopéia sem fim. Uma longa
narrativa sem tempo certo para começar ou terminar, cheia de pequenas
histórias de personagens anônimos e famosos. Na história dessa metrópole de
10 milhões de habitantes, o 13 de janeiro de 2004 será uma data irrelevante.
Apenas um dia qualquer na maior cidade da América Latina. Mas é na soma
desse intenso ir-e-vir, dos encontros e desencontros, que ela vai se criando
e recriando. O dia amanhece nublado e assim fica, com alguns momentos de uma
fina garoa e temperatura em torno de 20º C. Pelas próximas 24 horas, a
capital pulsará em cada um dos seus 1.528,5 quilômetros quadrados.
0h35 – O teclado do piano Kalwai, no mezanino do Bar Piratininga, na Vila
Madalena, é acariciado pelas mãos ágeis e experientes de Daniel Szafran.
Casais conversam, namoram, sorriem, envolvidos pela luz suave do ambiente e
por músicas como Trilhos Urbanos, de Caetano Veloso. Nada que escape aos
olhares atentos, solícitos, dos garçons Ronilson, José Ivan e José Paulino,
o Pelé, que com o barman Moacir Passarinho e o cozinheiro Gildásio formam a
comissão de frente do estabelecimento na Rua Wizard. O Piratininga, nome que
remete às origens da fundação da cidade, é um dos mais de milhares de bares
que alimentam a boemia da capital. “É uma homenagem também ao meu pai”, diz
o proprietário Pedro Geraldo Costa Júnior, filho do titio Pedro, locutor de
rádio e televisão, político, jornalista, famoso nas décadas de 1950 a 1970.
1h15 – A alguns quilômetros dali, na zona oeste, a chuva fina suaviza, vira
garoa, na Avenida Doutor Enéas de Carvalho Aguiar, que concentra o Instituto
do Coração, o Hospital das Clínicas (HC) e o Instituto Médico- Legal. No
maior e mais famoso centro de atendimento de urgência da cidade, o
pronto-socorro do HC experimenta uma almejada tranqüilidade. “Mas nem sempre
é assim”, lembra a enfermeira Maria das Graças, funcionária da instituição
há 28 anos e 20 em plantões noturnos. “Já vi muita desgraça”, lembra. “Aqui
há de tudo.”
1h45 – Na Praça Horácio Sabino, em Pinheiros, eletricistas estão há uma hora e
meia consertando um poste de iluminação. Eles fazem a manutenção de uma
cruzeta de madeira que desabou de podre. Um serviço de rotina, mas vital
para não deixar às escuras quarteirões inteiros de Pinheiros a Higienópolis.
Quando muitos paulistanos acordarem só saberão o que aconteceu porque terão
de ajustar os relógios digitais dos aparelhos domésticos. O eletricista
André de Oliveira, de 24 anos, ainda terá uma longa jornada pela frente.
Chegará em casa, no Itaim Paulista, dará um beijo na mulher e na filhinha de
2 anos, tomará um café e irá para um curso de Direito, em Mogi das Cruzes.
“É puxado, mas estou acostumado”, admite o ex-office-boy que virou técnico.
2h25 – A potiguar Maria Aparecida Santos Pinheiro tem olhos meigos e gargalhada
cativante. Simpatia que lhe garante sucesso de vendas e muitos amigos, nas
madrugadas da Ceagesp, o grande centro de distribuição de frutas, verduras,
peixes e flores. Dona Cida, de 54 anos, há mais de 32 longe de sua quente
Natal, vende sucos, cafezinho, leite, doces e sanduíches. “Dou de comer para
estes meninos há 18 anos”, orgulha-se. É uma batalhadora. Com o trabalho,
que vai das 21 horas ao meio-dia, comprou sozinha uma casa em Carapicuíba e
criou quatro filhos.
2h40 – As madrugadas na Ceagesp são de muito trabalho. Boa parte da metrópole é
abastecida ali. Três vezes por semana o aposentado Leovegildo Pereira do
Valle deixa a muher Elenita (“Uma princesa com quem casei em 1951”) na Vila
Medeiros para fazer seus bicos no entreposto. Ágil, bem-humorado, com um
chapelão de feltro para evitar rigores do sereno, dribla seus bem-vividos 83
anos fazendo carretos. Disputa espaço com os mais jovens e não faz feio.
“Faço 84 em 20 de maio e não preciso de óculos para ler”, frisa este
simpático baiano de Brotas de Macaúbas.
3h40 – O pátio do metrô no Jabaquara está lotado de composições. Vão sendo
checadas e limpas uma a uma. Cada vagão cheira a eucalipto. Operadores
preparam a “subida dos trens”, o início da operação comercial que começa
dali a uma hora e só vai terminar por volta da meia-noite. Alguns tiram um
último cochilo, o “sono de segurança”, uma conquista dos trabalhadores.
Waldir Carvalheira, de 49 anos e 22 na companhia, vai conduzir o primeiro
trem do dia, o 113. Depois de duas estações, embarcam os primeiros
passageiros. Entre eles, o eletricista Francisco Chagas Duarte, de 23,
trabalhador das madrugadas, que mora em Guaianases, extremo da zona leste –
17 paradas pela frente. Na capital, emprego não escolhe endereço. “De tanto
ficar no metrô e no busão (ônibus), a gente acaba arrumando muita amizade.”
4h – Acima do subterrâneo, a cidade segue silenciosa. Na Avenida Rebouças,
operários já estão a todo vapor na recente obra do túnel que passará sob a
Avenida Faria Lima. Dois marronzinhos conversam, relaxados ainda, à espera
do movimento que só crescerá a partir das 5h30.
4h48 – Na zona sul, o Parque da Aclimação já está aberto. Ouve-se o canto dos
pássaros e muitos “bom dia”. O cearense Francisco José Marinho, analista de
sistemas, sorri para todos. Ultrapassa um a um com seus passos de marcha
atlética. Está ali, como tantos outros, por conselho do médico: precisou
reduzir seus mais de 100 quilos a meros 65.
Enquanto uns se exercitam, Hideaki Iijima varre. Há oito anos ele faz isso,
de segunda a sexta-feira, sempre com suas luvinhas brancas de lã. “Um
japonês que vem para cá e consegue viver precisa ter gratidão a esta
cidade”, diz o empresário, dono das 31 lojas dos salões de cabeleireiros
Soho. “Se só eu limpar, não adianta nada. Mas se todo mundo fizer um
pouquinho…”
5h15 – A partir desse horário, é a vez de os esportistas amadores tomarem conta
da cidade. Em dois grandes galpões da raia olímpica da Universidade de São
Paulo (USP), remadores fazem exercícios e se aquecem. Luiz Alfredo dos
Santos, técnico do Espéria, tem 51 anos e desde os 19 cai na água seguindo
horários espartanos: sai da Vila Pompéia às 4h30 e 20 minutos depois está a
postos na raia da USP. Às 8 horas já estará no BankBoston, para uma jornada
de dez horas. O sacrifício compensa. “Aqui, faz mais frio do que na
Cantareira”, informa. Arrependimento por sair da cama? “Não, só quando se
perde um treino”, decreta o veterano dos Jogos Olímpicos de 1984.
6h15 – Por toda a cidade, as pessoas vão chegando aos seus trabalhos. De metrô
e ônibus. No Viaduto do Chá, um único camelô. Sidney Aparecido de Oliveira,
de 28 anos, casado, vende pão de queijo em uma bicicleta. A 30 centavos
cada. Chega às 5 horas pedalando e fica até as 7, quando começam a aparecer
os primeiros fiscais da Prefeitura. Vem de Vila Nova Cachoeirinha, de onde
sai às 2h30. Vende em média 400 pãezinhos.
6h30 – Na Praça João Mendes, bem na frente do Fórum, Massao Matsumoto, de 87
anos, inicia a sessão diária de ginástica com o dia clareando. Não está
sozinho. É líder de um grupo de umas 60 pessoas que se reúnem todas as
manhãs, há 13 anos. Vestidas de branco, começam às 6 horas e vão até 6h40.
Não é só gente ali da Liberdade. “Alguns vêm de longe”, diz Matsumoto,
elogiando a saúde do professor Massaru Hanai, de 89 anos. Eles são do grupo
Rádio Taissô. “É uma técnica mundial, boa para a saúde”, diz Matsumoto, que,
como Hanai, chegou ao Brasil com 15 anos e adotou o País e sua metrópole.
6h40 – O Mercado Municipal já está em atividade. O paulistano Sebastião da
Costa Borges, de 72 anos, trabalha no ramo há 60 e há 40 no mercadão. Sua
banca abre às 5 horas e vai até as 18. “A prefeita não vê que não temos
nenhum dia de descanso”, diz ele, reclamando da determinação de Marta
Suplicy de que o mercado abrisse no domingo. Sua banca, onde vende secos e
molhados, fica fechada aos domingos.
6h45 – Na zona sul, a engenheira carioca Patrícia de Sousa, de 28 anos, é uma
das várias pessoas que malham nas academias ao ar livre do Parque do
Ibirapuera. Triatleta, corpo pra lá de malhado, recomenda a todos: “Só de
ver as primeiras luzes do sol no lago já me faz chegar ao trabalho em alto
astral.” Na zona oeste, um grupo de 22 ciclistas pára na frente da Escola de
Educação Física da USP. Suados, ofegantes, ouvem recomendações do professor
Ricardo Arap, da Equipe Race. Depois de uma hora e 15 minutos de treino, são
dispensados até a manhã da quinta-feira. “Temos estudantes, profissionais
liberais, empresários e atletas que curtem este programa”, diz Arap.
6h50 – Na Rua Barão de Duprat guardas municipais já estão de olho nos camelôs
para evitar que montem suas barracas. Na 25 de Março e Ladeira Porto Geral,
o comércio ainda está fechado e os poucos camelôs ficam parados, com suas
sacolas. Policiais e ambulantes, cada um com seu motivo, esperam que o outro
grupo vá embora e os deixem trabalhar em paz. “Camelô existe desde a época
de Jesus Cristo, não é mesmo?”, pergunta Beth, que há oito anos vende café e
tapioca na região.
7h – É cedo, mas a sujeira já está evidente na região central. Cheira mal. A
feirinha do Parque D. Pedro II está acabando e o que sobra são restos
macilentos, amassados pelos carros que começam a se multiplicar. Nos baixos
do Viaduto do Glicério, os sem-teto iniciam os primeiros movimentos depois
da noite mal dormida. Na Cracolândia, o silêncio domina. Apenas uma ou outra
prostituta espreita pela janela.
7h15 – O Instituto Butantã ainda está fechado à visitação pública, que só
começa às 8 horas. Em suas alamedas arborizadas, circulam funcionários entre
as construções antigas que lembram fazendas do início do século passado. No
setor de herpetologia, o técnico Antonio Carlos Barbosa, de 53 anos e 27 de
casa, confere o acervo: 9 jibóias, 19 surucucus, 9 jararacas, 8 jararacuçus
e 23 cascáveis que precisam de cuidados. Confere ainda as condições de uma
cascavel que havia sido capturada em plena cidade, no dia anterior, e estava
de quarentena. “Vem aqui, lindinha”, brinca. “Não há perigo, pois ela tem
medo da gente”, avisa. Quem acredita?
7h33 – São menos de dez minutos dentro da paróquia Santa Edwiges, na Estrada
das Lágrimas, mas suficientes para fazer com que o cardiologista Huber
Aristóteles se sinta protegido. “Rezo para o Brasil, o Estado, a cidade, a
minha família, a Igreja, meus pacientes e eu só por último”, diz, logo
explicando: “Dizem que os últimos serão os primeiros.” E sai sorrindo e
purificado, todo de branco.
7h45 – No Bom Retiro as lojas já estão todas abertas. O restaurante Acrópoles
também – funciona das 6 horas à meia-noite. Thrassyvolos Petrakis, de 84
anos, que está ali no mesmo ponto da Rua da Graça desde 1963, só lamenta o
aumento da violência. De resto, o bairro continua abrigando imigrantes
recém-chegados. Primeiro os italianos, depois os judeus, os coreanos e
agora, os bolivianos, que enfrentam semi-escravidão. Petrakis viu tudo isso,
desde que chegou de Atenas em 1961. Já foi assaltado três vezes. “Mas não
admito que se fale mal de São Paulo e do Brasil. Aqui existe liberdade para
viver”, diz. “É o melhor país do mundo.”
8h – Na fábrica da mortadela Ceratti, fincada no meio da Favela Heliópolis, o
diretor Mario Ceratti Benedetti já completou sua primeira hora de serviço.
Ele nasceu exatamente nesse local, onde antes ficava a casa do fundador, o
avô João Ceratti, um açougueiro italiano que vendia miúdos aos operários
imigrantes nos anos 1930. “Antes havia muitos assaltos, mas depois que veio
a favela não tem mais.” Hoje são produzidas cerca de 15 toneladas de
alimentos nas 24 horas de atividade da empresa. É um tal de mói e mistura
carnes bovina e suína o tempo todo. O segredo está na sala de condimentos.
Lá está o aroma da mortadela. E que aroma.
8h20 – Pela manhã no Horto Florestal, zona norte, senhoras de passos lentos
trocam receitas de refogadinhos. Roberto Pereira da Silva, de 51 anos, busca
a tranqüilidade do local. “Venho de 3 a 4 vezes por semana, fico até as 17
horas de banco em banco, fugindo do sol.” Silva trabalha em confecção, mas
diz que nesta época do ano as fábricas estão quase paradas. Com o tempo
vago, fica em meio às suas sacolas de biscoitos e cigarros, lendo,
analisando a fisionomia de quem passa, fazendo pequenas anotações. Em que
banco haverá sombra às 14 horas? Pergunte a ele, que sabe o local exato dos
feixes de luz que penetram pelas copas das árvores.
8h30 – Bem longe dali, o São Paulo Futebol Clube inicia mais um dia de
atividades no Centro de Treinamentos da Barra Funda. Na véspera, foram
apresentadas as novidades da temporada: Cicinho, Wélber, Grafite, Fabão e o
técnico Cuca. Com cinco clubes do futebol brasileiro, a capital parece
acostumada a esse vaivém de jogadores, ora craques, ora desconhecidos em
busca de projeção nacional. O treinador Cuca é dos primeiros a chegar, com
uma novidade: o elenco ficará em concentração total. Para ganhar conjunto,
justifica.
9h – O empresário Antonio Ermírio de Moraes, de 75 anos, faz uma pausa no
trabalho, em seu escritório da Praça Ramos de Azevedo, onde está desde 1963.
É para falar da cidade, com entusiasmo: “São Paulo é o coração que bate mais
forte no Brasil. É dinâmico, rápido e trabalhador.” E destaca que esse
dinamismo tem a ver com a vinda de migrantes e imigrantes. Torce para que o
centro melhore. Da janela, mostra a Praça Ramos, com jardins limpos e
palmeiras imperiais que chegam até a altura do sétimo andar. Foi seu esforço
que ajudou a limpar a praça. Como é seu esforço muito do que se faz na
Beneficência Portuguesa, na Cruz Vermelha e na Cruz Verde. Esse empreendedor
levanta às 6 horas, chega ao escritório às 8 e só sai 12 horas depois.
9h35 – No Aeroporto de Congonhas, na zona sul, a movimentação de pessoas, táxis
e aviões já é frenética. Tudo fascina os integrantes da Companhia de Dança
Balé de Rua, um grupo de Uberlândia. Esperando uma conexão, eles admiravam
um pedacinho da cidade. “São Paulo é nossa meta. Quem quer se firmar no
Brasil, tem de ter reconhecimento aqui”, diz o diretor Fernando Narduchi. Da
janela do avião a caminho de Paris, onde fariam apresentações, os bailarinos
veriam pouco mais que as Avenidas 23 de Maio e Bandeirantes congestionadas
nesse horário.
9h50 – Da agitação de São Paulo – e da violência também –, Juliana França dos
Santos Silva, de 15 anos, já tinha ouvido falar pelos irmãos. Mas foi só às
9h50 que ela pôde sentir um pouco dessa movimentação. Mais de 22 horas
depois de ter deixado Vitória da Conquista, na Bahia, Juliana chega ao
Terminal Rodoviário Tietê. Era uma entre os 66 mil passageiros que chegam ao
terminal diariamente. Dois de seus oito irmãos moram em São Paulo há cerca
de cinco anos e um deles vai casar este mês. Pela janela do ônibus,
registrou sua primeira impressão da metrópole: “A quantidade de prédios é
muito grande.” No terminal, ela reencontrou seu irmão Marcelo, de 26,
ex-lavrador que virou manobrista. Com caixas gigantescas e bagagens
amontoadas, os dois seguiram para o metrô. O primeiro passeio, para Juliana,
teria de ser um shopping center.