Enchentes e falta d’água, a sina do paulistano

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Publicada em 6 de fevereiro de 2004
O Estado de S. Paulo

EDUARDO NUNOMURA
Se chove tanto em São Paulo, por que deve haver racionamento de água? A
pergunta que parece lógica povoa as inquietações dos paulistanos e revolta
quem foi vítima das enchentes de verão. Nem adianta justificar que a chuva
caiu em lugar errado ou que ela foi muito mais intensa do que as obras
podiam suportar. Depois de anos negando o óbvio, as autoridades começam a
admitir que a cidade está presa à própria armadilha de ter criado soluções
equivocadas ou desproporcionais aos seus problemas.
“A cidade está toda impermeabilizada. A primeira coisa que a pessoa quer
fazer é um cimentado em seu terreno. Não temos como fazer milagres”, afirmou
a prefeita Marta Suplicy (PT) para justificar que só obras de contenção de
enchentes não bastam. “São Paulo cresceu pressionando o rio (Tietê), quando
este é quem deveria orientar o crescimento da metrópole”, explica o
superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), Ricardo
Borsari.
Os dois problemas citados acima se traduzem em córregos, riachos e rios que
se enchem mais rapidamente. Os entornos do Tietê e do Pinheiros, os dois
maiores leitos d’água da capital, eram originalmente formados de várzeas,
que têm a função de acumular as chuvas. Nos últimos dez anos, o desmatamento
em São Paulo foi o equivalente a 20 Estádios do Morumbi – o mesmo cujo clube
ficou submerso na semana passada. Com menos verde, os bairros ficam mais
quentes e as chuvas de verão ocorrem com mais freqüência.
Para retardar a chegada das águas aos rios, as várzeas vão sendo
reconstituídas na forma de piscinões. Na capital, são necessários 43
reservatórios, mas só 14 estão em operação, 3 em construção e 2 ainda não
saíram do papel. Só a bacia do Aricanduva tem 9. Para toda a região
metropolitana, os engenheiros do Daee prevêem 65 piscinões – foram feitos 15
e 5 estão em obras nos Rios Tamanduateí e Pirajuçara.
Falta dinheiro para construir essas bacias de contenção de chuvas, tornando
as enchentes tão previsíveis quanto o trânsito em São Paulo. A Prefeitura
estima que seriam necessários R$ 3,85 bilhões – na gestão de Marta os
investimentos são da ordem de R$ 130 milhões por ano, perfazendo pouco mais
de 10% do total. Para finalizar os piscinões estaduais, vão ser necessários
R$ 425 milhões – já foram investidos R$ 163 milhões desde 1999.
Politicagem – Por muitos anos, autoridades e engenheiros se apressavam em
canalizar córregos como forma de ganhar dividendos políticos. A solução
técnica, contudo, empurrava as inundações para outra região. Um bom (mau)
exemplo é a canalização do Tamanduateí na Avenida do Estado.
Em 1999, o Estado estabeleceu um marco no tratamento do problema com a
criação do Plano Diretor de Macrodrenagem Urbana da Bacia do Alto Tietê.
Pela primeira vez em muitos anos, a região metropolitana passou a ter uma
orientação clara do que fazer para aprender a conviver com as cheias.
Cidades como Los Angeles e Tóquio, onde se sabe que pode haver terremotos,
usam o que há de melhor em tecnologia e conhecimento para reduzir os
impactos de eventuais tragédias.
Ousado, o plano de macrodrenagem prevê uma série de medidas de pequeno a
grande impacto: formação da consciência ambiental dos moradores, uso de
pisos que absorvem água da chuva, sistemas de retenção, aumento da área
verde e controle da ocupação desordenada do solo. Soluções que ainda não
foram adotadas em sua totalidade, mas que uma vez prontas darão um fôlego à
região metropolitana até 2020.
Poucas ações – “Há um vício de origem, porque não é só investir nos córregos
e rios principais. Foram realizados projetos em caráter de emergência, mas
não houve ações para pôr o plano em prática”, diz Mário Mantovani, diretor
da organização não-governamental SOS Mata Atlântica.
Na sua análise, há uma bomba de efeito retardado com esse sistema de
canalização de córregos, riachos e construção de piscinões. Sem outras
medidas como a desocupação das favelas nos fundos dos vales ou a redução dos
solos impermeáveis, São Paulo eternizará o problema das inundações.
O governador Geraldo Alckmin afirmou que o rebaixamento de calha do Rio
Tietê, um projeto de R$ 688,3 milhões, já ajudou a reduzir as enchentes. “Da
obra, 65% estão concluídos e o Tietê, pelo segundo ano consecutivo, não
transbordou.” Só que o maior volume do rio acabou barrando a enxurrada de
afluentes, como o Tamanduateí. A água que vem desde a região do ABC não
consegue “entrar” na calha, volta e pára na Vila Prudente, uma das áreas
mais castigadas dos últimos dias. (Colaboraram Bárbara Souza e Iuri Pitta)

Soluções simples. E não se perde água
Graças ao Plano Diretor de Macrodrenagem Urbana da Bacia do Alto Tietê,
aumentou a consciência dos políticos de que as soluções precisam ser
discutidas sem limitações geográficas e mesmo as pequenas medidas não devem
ser ignoradas. São Bernardo do Campo dá o exemplo. Dez mil casas em área de
manancial – lá fica a Represa Billings – já possuem calçadas ecológicas. Em
vez de cimentar até o último centímetro de terra, o calçamento precisa ter
quase metade de sua área coberta por grama. Na mesma região, 40 quilômetros
de asfalto poroso permitem a absorção imediata das águas das chuvas, que
penetram no lençol freático e abastecem a represa.
Em São Paulo, a proposta para a nova Lei de Zoneamento pretende aumentar os
índices de permeabilidade do solo. Num terreno de mil metros quadrados em
zona residencial, 300 teriam de ser de terra ou grama, ante os atuais 150. É
um rigor maior à cultura desenfreada de pavimentação. Das 45 mil ruas da
capital, 30 mil são pavimentadas. Elas vão sendo asfaltadas a uma velocidade
de 14 quilômetros por mês.
A verticalização da cidade também deveria merecer um tratamento mais sério
dos planejadores urbanos. A cada prédio erguido, construtoras acabam
empurrando alguns metros para baixo os níveis do lençol d’água. Tudo para
construir garagens sequinhas. O problema é que esse processo de bombeamento
acaba por diminuir ainda mais a capacidade de absorver água no solo.
Desperdício – Já outra regulamentação municipal, a Lei das Piscininhas,
exige que novas construções em área superior a 500 metros quadrados devem
conter um reservatório de no mínimo 4.500 litros. É o suficiente para reter
uma hora de chuva de verão. “Seria uma lei plena, se ela previsse também o
reuso da água. Mas isso ainda não é permitido por causa de outra
legislação”, explicou Adriano Diogo, da Secretaria do Verde e Meio Ambiente
e autor do projeto.
A Lei das Piscininhas ajudaria a responder em parte a questão da falta de
água, cujo rodízio é praticamente certo nos verões. Se dependesse da vontade
do secretário, cada paulistano seria um potencial poupador de água. Com
técnicas adequadas de armazenamento, para evitar a proliferação de doenças
como a dengue, ele poderia acumular água das chuvas que caem nos telhados e
a reutilizaria para regar jardins, lavar carros e garagens – jamais para
beber.
Em termos práticos, significa deixar fechada a mangueira que jorra água
potável e faz tanta falta para uma região com 19 milhões de habitantes. “Fiz
a lei para lançarmos o debate na sociedade. É uma vergonha nacional que o
País não possa reaproveitar sua água”, afirmou Diogo.
Sem isso, alguns são obrigados a conviver com racionamento e outros podem se
dar ao luxo de esbanjar consumindo diariamente 600 litros de água. “O uso
racional e o reaproveitamento bem-feito contribuiriam para evitarmos a
escassez do produto”, disse o superintendente da unidade de produção da
Sabesp, Paulo Massato. Por ter problemas hercúleos, São Paulo acaba
ignorando soluções pequenas que, juntas, geram resultados surpreendentes.
Limpeza – Uma delas é a conservação de córregos, galerias e bocas-de-lobo.
Um papel de bala atirado pela janela do carro é desprezível, mas como
milhares de paulistanos cultivam o mesmo péssimo hábito a soma deles entope
bueiros e mais bueiros. No ano passado, a Prefeitura gastou R$ 42 milhões só
para essa tarefa. Quantia que poderia ser menor ou mais bem aproveitada. “No
período chuvoso, dividimos equipes para atender emergências e continuar no
preventivo, senão teríamos ainda mais socorros”, disse o assessor da
Secretaria das Subprefeituras Sergio Aparecido Rodrigues Pereira.
Resta, no fim, o doloroso trabalho de remoção de entulho e auxílio
financeiro às vítimas das enchentes. São Paulo tem 192 áreas de risco e
nelas há 522 setores críticos. São 27.500 moradias em locais potencialmente
perigosos. “Toda obra tem um limite. A solução definitiva? Só se essas
famílias fossem removidas”, resumiu Agostinho Ogura, geólogo do Instituto de
Pesquisas Tecnológicas. (Colaborou Iuri Pitta)

Depois dos piscinões, por que inundou?
Na região do Aricanduva, a maior bacia da cidade e a que concentra metade
dos piscinões do Município, o avanço da água pelas casas e lojas não é mais
por causa do transbordo do córrego. O problema está nas áreas mais baixas,
que chegam a ficar mais de 2 metros abaixo do nível da avenida. “Com isso,
em vez de o córrego receber a enxurrada, ele bloqueia e o refluxo leva a
água de volta para a rua”, explicou o secretário Roberto Luiz Bortolotto
(Infra-estrutura Urbana). O órgão pretende construir diques nessas áreas,
mas não tem recursos previstos para as obras.
Situado na zona leste, o Aricanduva é um afluente da margem esquerda do Rio
Tietê, tem 13.400 metros de extensão e drena uma área de 100 quilômetros
quadrados – a maior parte com intensa urbanização. Segundo o Plano Diretor
de Macrodrenagem Urbana da Bacia do Alto Tietê, além da construção de 13
piscinões na região, seriam necessários o revestimento do fundo do canal do
córrego em alguns pontos e a elevação de algumas pontes – como já tem sido
feito. Outro problema é a redução drástica de suas áreas verdes, que
ajudariam a conter a chuva.
Parceria – A prefeita Marta Suplicy e o governador Geraldo Alckmin já
conversaram sobre outro local problemático de enchentes, os arredores do
Córrego Pirajuçara. Na segunda-feira, segundo Bortolotto, houve uma
precipitação atípica, o que fez as águas invadirem as casas da região. “Não
há obra que consiga suportar um volume desses”, disse. Entre as iniciativas
estaria a liberação de verba para a construção de mais 15 piscinões, além
dos 3 em operação e 2 em construção.
Afluente do Rio Pinheiros, o Pirajuçara só conseguirá suportar chuvas mais
fortes se tiver um sistema de drenagem adequado, com pelo menos 10 piscinões
em funcionamento. Essas bacias de retenção de água seriam capazes de
armazenar chuvas de até 65 milímetros num intervalo de duas horas. A galeria
sob a Avenida Eliseu de Almeida, próximo da Cidade Universitária, tem uma
precária capacidade de escoamento para uma bacia que drena 72 quilômetros
quadrados de área. (Iuri Pitta e Eduardo Nunomura)

A enchente que destruiu o futuro de uma família
Como reconstruir a vida? Milhares de paulistanos ainda pensam em como fazer
isso depois de anos de sacrifício destruídos pelas enchentes. Ivone Lago e
Francisco Avelino de Oliveira não sabem. A casa onde moravam virou um grande
lamaçal. Móveis, eletrodomésticos, roupas, objetos pessoais, pouquíssima
coisa restou na semana passada depois que a região do Aricanduva ficou
submersa. A água foi tão forte que não poupou o que a dona de casa julgava
ser o futuro da família: o computador.
“É o que mais me dói, era o trabalho das minhas filhas, o futuro delas, da
gente. Foi tudo embora”, disse Ivone, chorando ao mostrar a máquina
enlameada no banheiro. Era um Compaq novo, comprado num financiamento – como
muitas outras coisas da casa. Para Thaís, de 18 anos, Ana, de 15, e Nara, de
14, ajudava a dar-lhes a tão exigida “experiência em computação”.
Típica família de classe média, os Oliveira traduzem o sofrimento de muitos
paulistanos vítimas das enchentes. Com renda de R$ 1.200, eles tiveram de
financiar tudo: geladeira, aparelho de som, videocassete, TV, armários,
sofá. Sempre um de cada vez.
Como Thaís acabara de concluir o ensino médio, o objetivo passou a ser
investir em seu currículo. Ganhou um curso de inglês. “Vou ter de cancelar.
Vamos precisar desse dinheiro”, consolava-se a jovem no meio do seu quarto
destruído. Não demonstrava revolta, só tristeza.
Resgate – No início da noite de quarta-feira, Ivone havia ligado para o
celular de Thaís avisando para ela não retornar. Era perigoso, a enchente já
batia na porta da casa. E a dona de casa quase foi levada pela força da
cheia. Um vizinho e o marido a resgataram quando já estava se afogando.
Quando o Aricanduva enchia, a comporta de ferro construída por Francisco
dava conta. Mas desta vez o nível da água ultrapassou 1 metro de altura. “A
culpa foi minha, porque sempre achei que aquela comporta suportaria. Temos
um terreno para construir uma casinha, mas sempre achava que dava tempo para
esperar. Desta vez, o tempo chegou”, afirmou Francisco. (Eduardo Nunomura)

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