Publicada em 22 de fevereiro de 2004
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
O inquérito policial 001/2004-Decap, que apura a morte de duas dezenas de
animais no Zoológico de São Paulo, já acumula mais de 250 páginas. Até o
momento cerca de 250 pessoas foram ouvidas, o que obrigou o delegado Clóvis
Ferreira de Araújo a criar um banco de dados para cruzar as informações.
Trinta e sete homens da Unidade de Inteligência Policial foram divididos em
dois grupos. Um trabalha com a hipótese de envenenamento acidental. O outro
investiga a possibilidade de existir um assassino em série ou mesmo um
complô agindo no parque. Contra os policiais, o tempo. E a certeza de que a
Polícia Civil enfrenta um inédito crime.
A polícia tem de agir rápido. Na sexta-feira à noite, Araújo dirigiu-se ao
Zoológico para ouvir mais pessoas. Foi também conferir por que há tantas
informações desencontradas, como das 17 novas mortes da semana passada. Um
dado chamava a atenção: o delegado sabia da morte de quatro porcos-espinhos;
na verdade, eram oito. Verificou no local que alguns apresentavam fraturas,
o que pode indicar brigas entre eles e não morte por envenenamento. “Esse
caso tem diversas nuances. Bicho não fala e o da jaula ao lado também não.
Não há um sistema oficial de verificação de óbitos de animais. Não há um só
local do crime, mas vários. Cada recinto é diferente do outro. É uma
complexidade fora de série”, admitiu.
Clóvis Ferreira de Araújo tem um interesse particular em desvendar o caso.
Amante de animais (tem um cachorro, peixes e pássaros em seu apartamento),
ele se graduou em biologia antes de virar delegado. Tal formação permite a
ele desconfiar de muitas coisas que os técnicos, biólogos e veterinários do
Zoológico estão dizendo. Às vezes, lança uma pergunta aparentemente tola,
mas no fundo quer saber se estão tentando enganá-lo. Também pode ler um
laudo científico sobre o veneno que vem matando os animais sem torcer o
nariz. Mas, antes que outros fiquem com ciúmes, faz questão de frisar:
“Estamos trabalhando em equipe.”
Feriado – Uma parte desse trabalho é feito por dez profissionais do
Instituto de Criminalística. Eles estão fazendo desde a análise das vísceras
dos animais até a perícia do local. Há dois documentoscopistas, dois
toxicologistas, dois fotógrafos, um especialista em sangue, um de local do
crime e dois diretores. Nestes dias de carnaval, os peritos trabalharão para
entregar até o fim da semana os laudos. Funcionários do Zôo seriam ouvidos
ontem. Nos próximos dias, fiscais do Ibama, órgão federal, entrarão no caso
e farão uma operação dentro do parque.
Apesar da força-tarefa, é como se tudo estivesse no meio do caminho. O maior
progresso das investigações foi obtido a partir do cruzamento das relações
entre algumas pessoas que poderiam ter interesse em matar os animais. “São
ligações não só profissionais, mas de fortes indícios, inclusive de que
teriam habilidade em lidar com o veneno e perfil para cometer o crime”,
afirmou Araújo. Pode ser uma pista que feche o cerco, ao contrário de outra
encontrada no dia 11. Nessa data, duas pessoas foram detidas por vender
ilegalmente o veneno monofluoracetato de sódio, o “mão branca” ou 1080. Elas
não estão presas, mas continuam sendo investigadas.
O problema é que descobrir que o veneno está à venda no mercado negro amplia
demais o universo de suspeitos. “De início, a hipótese de acidente era mais
forte, mas as novas investigações indicam que houve uma prática dolosa”,
disse o delegado Araújo. Estão na mira dos investigadores funcionários,
ex-funcionários, profissionais terceirizados, fornecedores e a empresa de
desratização.
“A diretoria não está sob análise, porque tivemos o cuidado de conversar
bastante com eles antes. Só serão investigados se houver um indício mais
concreto. Há outras pessoas com mais motivos”, disse.
O diretor-presidente da Fundação Parque Zoológico de São Paulo (FPZSP),
Paulo Magalhães Bressan, admite a crise na instituição, mas afirmou que, se
a polícia achar a motivação para o crime, encontrará o autor. “É nisso que
todos estão trabalhando e, talvez, a resposta seja mais simples do que se
imagina.” À frente do parque desde meados de 2001, Bressan disse que teme
pelo pior, ou seja, a possibilidade de alguém de dentro estar por trás das
mortes. “A minha torcida é para que não seja um funcionário. Seria uma
facada nas costas da instituição.”
Apesar de a direção do Zôo ter tentado considerar “normais” as mortes de
outros 17 animais na semana passada, os funcionários parecem perdidos. “É
uma situação muito delicada, está complicado. Nunca vi coisa parecida, estou
chocada”, desabafou a bióloga Katia Cassaro, há 18 anos no parque e chefe da
Divisão de Mamíferos, setor que concentrou a quase totalidade das mortes. O
novo número surpreende porque é muito superior à média de 4 a 5 mamíferos
mortos por mês. Nesse ritmo e, se não houvesse reposição dos bichos, o
Zoológico ficaria sem acervo em pouco mais de três anos.
Um outro episódio lança mais nuvens sobre a instituição. Desde dezembro e
até o dia 20, 30 macacos-prego morreram no Zôo Safári, administrado pela
FPZSP. Apesar do número elevado, essas mortes não foram relacionadas com os
envenenamentos porque as necropsias deram negativo. Para o
diretor-presidente, o número “não é de todo surpreendente para quem trabalha
em zoológicos”.
De acordo com Bressan, há duas explicações para esse caso. Tudo seria
decorrência da adaptação desses animais em um novo recinto, quando dois ou
mais grupos se encontram. “Nessa disputa, muitos brigam entre si e morrem.
Outros, vencidos, se submetem ao novo líder, não sem sofrer um processo de
stress. E, a partir daí, podem adoecer e vir a morrer em decorrência de
processos infecciosos, especialmente pulmonares.” Exames deram positivo para
estafilococo, uma bactéria.
Prejuízos – Há um compromisso da atual administração do parque, se e quando
a situação se acalmar, de repor o acervo com cerca de 3.200 animais. Mas o
custo é elevado.
Para comprar um dromedário no mercado, segundo a Sociedade de Zoológicos do
Brasil, o custo é de US$ 12 mil. Um orangotango, cerca de US$ 60 mil;
chimpanzés, US$ 40 mil cada um; elefante, US$ 40 mil. Ou seja, com as 13
mortes suspeitas de envenenamento e as outras ainda em averiguação, a
fundação teve uma perda de quase R$ 1 milhão. O orçamento do parque é de R$
13 milhões – 55% vêm da bilheteria e o restante, de repasses do Estado.
Para os funcionários, contudo, esses valores não representam nada diante das
60 mortes já registradas – 13 por provável envenamento, 17 da semana passada
e os 30 macacos-prego do Zôo Safári. “Estamos tristes e magoados. É como se
tivéssemos perdido alguém de nossa família”, afirmou Kátia. “Estamos nos
sentindo impotentes, porque não há antídoto para esse mal”, disse o chefe da
Divisão de Veterinária, José Daniel Fedullo, 26 anos de Zôo. Muitas rotinas
estão sendo deixadas de lado, desde que as mortes começaram. Testes de
prevenção de doenças infecciosas e pesquisas em anestesiologia em felinos
foram adiados. A catalogação dos animais está parada.
A veterinária Cristiane Schilbach Pizzutto, que faz doutorado na
Universidade de São Paulo, levou um grande golpe. Sua pesquisa de
aprimoramento de ambientes simplesmente perdeu o objeto de pesquisa, a
orangotango Karen e os chimpanzés Tony, Nancy e Felipe. Trabalhando com a
bióloga do parque Ana Maria Beresca, Cristiane construiu um novo recinto
para a orangotango e já se preparava para desenvolver o dos outros bichos.
Karen, de 35 anos, teve só dois meses de sua vida para aproveitar o local
renovado. Foi uma mudança extraordinária em seu comportamento. Bastaram 15
minutos para que ela começasse a andar nas cordas, subir na plataforma de
madeira e procurar os alimentos escondidos nas tocas. “Ainda estamos
abalados, não sabemos o que acontecerá com o estudo”, disse. “Era meu
projeto de vida. É muito doloroso.”
Com as investigações em curso, impera a lei do silêncio entre os
funcionários do parque. Alguns relataram ao Estado que não podem divulgar
nada, nem dar entrevistas, por orientação da polícia. As informações
relativas ao Zôo estão concentradas na Divisão de Ensino e Divulgação. O
diretor-presidente negou que houve esse tipo de orientação dos
investigadores, mas disse que a decisão foi tomada para que pudessem retomar
a rotina.
Todas as necropsias estão sendo feitas por funcionários do Zôo. O delegado
Araújo se ressente de não haver um órgão específico para óbito de animais,
como o Instituto Médico-Legal. Ganharia agilidade na análise da causa
mortis. Extra-oficialmente já se sabe que o veneno “mão branca” é o
responsável por oito mortes. Foi um fim doloroso para os bichos.
O monofluoracetato de sódio é considerado um “superveneno” pela agência
ambiental americana. Banido do País na década de 70, o “mão branca” já
causou muitas mortes de animais acidentalmente. O sal é diluído em água para
que os ratos bebam a mistura. No fígado, três moléculas do monofluoracetato
de sódio se combinam para formar uma de fluorocitrato, que envenena as
enzimas do ciclo de Krebs, impedindo a respiração celular. De 30 minutos a 2
horas após a ingestão, surgem as náuseas, vômitos e convulsões. O coração,
os rins e o cérebro são os mais afetados.
Licitação – É por esse motivo que os investigadores do Departamento de
Policia Judiciária da Capital (Decap) e do Instituto de Criminalística têm
convicção de que os responsáveis pelo crime sabiam exatamente o que faziam.
Quando o animal ingere o veneno, seu organismo perde a força vital. Ele pára
de se alimentar, fica apático. “É como um prédio que começa a desabar. Num
momento está em pé, no outro cai. A morte é súbita”, afirmou Bressan, que
ajudou a descobrir que o agente tóxico era o “mão branca”.
Não há antídotos para esse veneno. No dia 5, quando já haviam ocorrido oito
mortes e se suspeitava do “mão branca”, os veterinários ainda tentaram
salvar Felipe, um chimpanzé de 20 anos. Ao verem que estava sem se
alimentar, correram para o hospital do Zoológico, onde fizeram uma lavagem
estomacal, aplicaram carvão ativado e medicaram o animal. Ele chegou a
melhorar, mas no dia seguinte apareceu morto. No caso da elefante Baira, de
34 anos, foram 18 horas de sofrimento até sua morte.
Por causa dessa crise, o Zoológico vem adotando medidas de emergência. Na
quinta-feira, foi publicada no Diário Oficial do Estado a contratação, com
dispensa de licitação, da empresa Grupo de Segurança e Vigilância, que vai
fornecer uma equipe de vigias para 4 turnos diurnos e 3 noturnos.
Outra dor de cabeça que atormenta a direção da FPZSP é a contratação de
serviço terceirizado para o Zôo Safári. Como uma empresa concorrente
contestou a licitação, a atual cooperativa, Coopema, teve seu contrato
prorrogado para evitar interrupção do serviço.
Eutanásia – Não bastassem esses problemas, outros mais antigos ameaçam
conturbar a já delicada situação da instituição. Entidades protetoras de
animais protestaram contra a prática e defesa da eutanásia em agosto de
2001. Pelo menos três filhotes de leões foram mortos no Zôo Safári (ZS). O
diretor-técnico científico da fundação, José Luiz Catão Dias, justificou em
memorando interno a atitude pela “absoluta incapacidade das estruturas
atuais da FPZSP e ZS sustentarem esses animais permanentemente”.
Catão Dias considerou “inviável” a doação para outras instituições para
receber os bichos excedentes e determinou ainda que a Divisão de Veterinária
estudasse procedimento anticoncepcional para as leoas. Outra determinação:
os filhotes nascidos com leucemia e imunodeficiência felina viral, uma
espécie de aids dessa espécie, deveriam ser mortos.
Outro caso que preocupa alguns funcionários é o sumiço de dezenas de aves a
partir de novembro de 2001 do lago do parque. Entre as espécies, cisnes
brancos e pretos. Na época, havia suspeita de roubo, mas nada foi provado.
Em certa medida, o Zoológico de São Paulo passa pelo mesmo inferno astral
que atingiu o National Zoo, de Washington. A diferença é que em 2002 e 2003,
o parque americano se viu às voltas com uma série de acusações de
maus-tratos, omissão de dados e até incompetência em evitar a morte de dois
animais envenenados. Lá, as investigações chegaram ao Congresso depois que
ocorreram 23 mortes num período de seis anos.