Publicada em 5 de junho de 2004
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
PORTO PRÍNCIPE – A diretora de escola Enide Joseph Dauphen já não sabia mais
o que fazer senão esperar para que esta semana terminasse logo. Desolada,
ela se sentou numa cadeira no portão da escola municipal Carl Brouard, onde
ali deveria estar um bedel, e desabafou: “Os professores foram a uma
manifestação e ninguém voltou.” Há cinco dias os cerca de 500 estudantes da
Carl Brouard, uma escola municipal do bairro Marche Salomon, estão sem
aulas. No Haiti deste século todos querem uma boa educação, pois isso
representa pontos na hora de procurar um emprego. Até as crianças sabem
disso. E elas vão para as salas de aula mesmo que não haja professores.
“Se vim para cá, tenho de estudar”, responde disciplinadamente Bigord
Ronald, um garoto de 13 anos que sonha em ser médico.
Greves têm sido uma rotina na vida dos serviços públicos haitianos. E talvez
seja por essa razão que ninguém está satisfeito com a prefeitura e o
governo. Sem dinheiro suficiente, não se trabalha. Os 15 professores da
escola Carl Brouard recebem 2.500 gourdes (cerca de R$ 221) para dar oito
horas de aula por dia. Na segunda-feira, eles protestaram na prefeitura
porque há um ano querem receber mais. E, diante da resposta, decidiram
cruzar os braços.
Depois de passar a lição a sete turmas, uma por uma, a diretora Enide reúne
forças para um novo desabafo: “O que vai ser de um país que não tem
educação?” Reclama da falta de giz, dos alunos sozinhos em sala de aula, das
cadeiras quebradas, da sujeira em toda a escola.
Em todo o Haiti, os pais têm de pagar para que seus filhos estudem, seja
numa instituição privada ou pública. Quando chegam pela primeira vez na Carl
Brouard, lembra Enide, as crianças estão descalças, sem uniforme, material
escolar e não raras vezes subnutridas. O fundo criado com a taxa de 375
gourdes por ano cobrada das famílias é a solução. Só que cada vez menos
pessoas pagam essa taxa. Por causa dessa cobrança, muitos não conseguem
matricular todos seus filhos.
Na capital haitiana, Porto Príncipe, há crianças uniformizadas por toda a
parte. No último governo do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, ele adotou
a política de criar escolas. Muitas. Mas não deu condições para que os
professores pudessem ensinar recebendo bons salários. Historicamente tem
sido assim, como prova a quase metade da população analfabeta. Os pais que
podem matriculam seus filhos nas escolas privadas. Só que o custo é elevado,
até 2.500 gourdes de mensalidade.
A destruição da maioria dos serviços públicos haitianos é conseqüência da
instabilidade política e do vácuo de poder que freqüentemente assola o país.
Como nesse exato instante, em que uma Força de Paz da ONU, desta vez
comandada pelo Brasil, tentará reconstruir o sistema político do Haiti. Um
dos objetivos da missão será restabelecer eleições livres. Atualmente, há um
primeiro-ministro com mandato-tampão, Gèrard Latortue.
No sistema de saúde, as coisas também não andam bem. O cirurgião Camille
Archange, diretor médico do Hospital Universitário do Haiti, admite que a
situação é problemática. “Nunca temos médicos, enfermeiros, medicamentos ou
equipamentos suficientes para atender à demanda.” São 700 leitos, 120
médicos e 345 enfermeiras no hospital, mas o número de atendimentos anuais é
enorme: 65 mil no pronto-socorro e 120 mil nas outras especialidades.
O hospital é o maior do país e o que mais recebe pacientes vindos do
interior. Possui todas as especialidades, mas a qualidade do atendimento
varia conforme o número de profissionais e de equipamentos de cada área. Há
9 cirurgiões para uma população de 8 milhões de haitianos.
O Haiti conta com ajuda humanitária de diversos países e muitas
organizações. Segundo o diretor Archange, o Brasil podia emprestar o seu
conhecimento nessa e em outras áreas para melhorar a saúde pública do Haiti.
O hospital sobrevive com dinheiro do governo e dos poucos que podem pagar um
tratamento. Apenas 60% dos haitianos têm acesso a qualquer tipo de serviço
de saúde.