Publicada em 22 de agosto de 2004
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
e ROSA BASTOS
Na última noite de sua vida, Cosme Rodrigues Machado não fez nada além da
rotina. Chegou ao estacionamento onde ajudava a lavar carros e jogou
conversa fora com os funcionários. Por volta das 23 horas, buscou um café
para os colegas, despediu-se deles e foi dormir. Ninguém imaginava que nas
horas seguintes ele seria mais uma das vítimas da chacina que deixou quatro
moradores de rua mortos e outros seis feridos.
O baiano Machado tinha 56 anos e nos últimos 10 dormiu seguidas noites na
Rua Tabatingüera. Brincalhão, dizia que já trabalhou como pizzaiolo e
chapeiro. Não bebia nem usava drogas. Tinha uma irmã. Para ganhar algum
dinheiro, ajudava comerciantes da região. Nem sempre precisava dormir ao
relento. Tinha vários amigos, entre eles o porteiro de um prédio que muitas
vezes lhe cedia uma cama quentinha e confortável. Por que foi assassinado é
o que todos estão se perguntando.
A morte brutal de Machado parece contradizer algumas hipóteses que a polícia
investiga. Não havia comerciantes que queriam retirá-lo da área. Ele não
urinava nem defecava na frente das lojas. Tinha pouco contato com outros
mendigos. “Mas estava no lugar errado, na hora errada”, arrisca Manoel Cosme
da Silva, de 44 anos, um dos mais de 10 mil moradores de rua de São Paulo.
Apelidado de Xuxa, Silva não conhecia Machado, mas sim o travesti Givanildo
Amaro da Silva, o Pantera, outro sem-teto morto. “Estou cismado, porque
devem estar atacando qualquer um de nós.” Entre ficar escravizado pelas
regras dos albergues ou viver sentindo-se desprezado nas ruas, Xuxa fez a
segunda escolha. Casado e com quatro filhos, ele bebe parte dos R$ 7,00 que
ganha com a venda diária de latinhas de alumínio. A aguardente neutraliza
seu sofrimento.
Compreender a complexidade de quem vive nas ruas ajuda a ver que ele é
vítima da exclusão e do preconceito. “No imaginário da metrópole, é visto
como um infrator, como alguém que quebra as regras de uso e comportamento no
espaço público. Em contrapartida, ele vive em estado permanente de
incerteza, indignação e conflito”, explica a professora da Universidade de
São Paulo (USP) Maria Cecília Loschiavo dos Santos.
Isso ocorre porque há poucas políticas públicas de inclusão para moradores
de rua. A maioria é só assistencialista. Tanto que um mendigo já não morre
mais de fome. Nos últimos anos, criou-se uma extensa rede solidária com
voluntários oferecendo lanches, sopas, marmitex e cobertores.
Na cidade, não há albergues para todos. E mesmo nesses locais tudo se resume
a tirar mendigos do espaço público, dar-lhes banho, refeição e
oferecer-lhes uma cama para, às 6 ou 7 horas, jogá-los na rua de novo.
Na prática, funciona assim: um homem toca a campainha do Abrigo São
Francisco, no Glicério. Está sujo, faminto e embriagado. O funcionário abre
e diz que ele não pode entrar. “Não estou alcoolizado”, insiste. Os outros
vão passando. Lá dentro tomam banho, comem arroz, feijão, ovos e salada,
servidos por eles próprios, ouvem palestras ou vêem TV antes de dormir.
O abrigo funciona 24 horas e fica lotado nas noites frias. Há 450 pessoas
para passar a noite e 200 para o dia. A qualquer momento pode-se ir lá tomar
banho, cortar o cabelo, lavar roupa ou pedir ajuda para tirar documentos,
encontrar um parente, escrever cartas, voltar para casa. “Achei melhor
pernoitar”, contou José Sacramento, cearense de 45 anos. Até poucos dias
atrás ele dormia no Largo de São Francisco e jurava que jamais poria os pés
num albergue. Mudou de idéia com as mortes da semana passada.
Sem saída – “Criou-se um ciclo vicioso tão terrível que a pessoa fica seis
meses num albergue, depois vai para outro e em dois anos volta para o
primeiro. É irracional porque nesse tempo todo nada se fez para tirá-lo
dessa situação”, critica Alderon Pereira da Costa, coordenador da Associação
Rede Rua.
Talvez por isso muitos, abandonados à própria sorte, prefiram as ruas.
Vanusa Santos de Jesus, de 22 anos, passa o dia embaixo do Minhocão com os
filhos de 4, 2 e 1 ano, sujos de fuligem da cabeça aos pés. O pai das
crianças cata papelão e eles tomam conta. “Viver assim é humilhante”, diz
Vanusa. Ela não teme agressões. “Isso só acontece de madrugada, quando não
tem ninguém olhando.”
Depois de catar ferro-velho o dia inteiro, o alagoano Reginaldo Silva ajeita
o colchão na carroça, coloca roupas num saco e faz de travesseiro. Há cinco
anos dorme assim, cada noite em um lugar. Seus bens são a carroça e um
rádio. “Se amanhã, Deus me livre, amanhecer morto, vou fazer o quê?”
Como as outras vítimas indefesas, ele pouco poderia fazer. No máximo, seu
nome seria lembrado, como na missa que ocorrerá hoje, às 14 horas, na
Catedral da Sé, em homenagem às vítimas. Amanhã, às 18 horas, haverá uma
caminhada a partir do Largo São Bento.
“É vital que nós, que não somos moradores de rua, lutemos contra essa
violência. Uma vez que tal brutalidade se torne aceitável, estaremos
perdidos e não muito longe de práticas de genocídio contra pessoas
consideradas indesejáveis”, diz o professor de Direito da Universidade da
Califórnia em Los Angeles (UCLA) Gary Blasi, que há 30 anos trabalha com
esse público nos Estados Unidos.