Publicada em 17 de outubro de 2004
O Estado de S. Paulo
EDUARDO NUNOMURA
Enviado especial
PETROLINA
O Rio São Francisco sobrevive de teimoso. E é com essa teimosia, meio
mineira, meio nordestina, que ele vai passar por mais uma provação. Querem
transformá-lo num grande doador de água para o semi-árido sem que até hoje
nenhum programa sério tenha devolvido a vida que lhe tiraram. O projeto de
transposição virou prioridade do governo Lula e reacendeu uma discussão que
remonta aos tempos do Império. Pode o mais nacional dos vertedouros ser o
caminho dos ribeirinhos, gerar o alimento que nunca falta, produzir a fonte
da energia enriquecedora e, ao mesmo tempo, promover a sonhada integração do
homem nordestino?
Ao longo de 2.700 quilômetros, da nascente na Serra da Canastra, em Minas,
até desaguar no Oceano Atlântico, na divisa de Sergipe e Alagoas, o São
Francisco sintetiza as desigualdades de um país desigual. Miséria e riqueza,
chão de pedra e terras irrigadas, águas poluídas e cristalinas, destruição e
recuperação, fome e fartura, caatinga e cerrado, morte e vida da natureza.
Tudo isso se materializa no Velho Chico e em seus afluentes. Temas que
começaram a ser debatidos nas consultas públicas do comitê da bacia
iniciadas na quinta-feira.
“A maioria indicou que o projeto não passa de uma falácia e nós do Baixo São
Francisco estamos contra”, disse o padre Isaías Carlos Nascimento Filho após
a consulta na cidade de Propriá (SE). Outras quatro reuniões já estão
marcadas para os próximos dias. Ocorrerão em Bom Jesus da Lapa (BA), Belo
Horizonte (MG), Petrolina (PE), Pirapora (MG) e Salvador. A discussão se dá
em torno do estudo de impacto ambiental, etapa vital antes das obras.
O relatório de 137 páginas enumera 44 impactos provocados pela construção de
dois canais que tirarão entre 26 e 127 metros cúbicos (mil litros) de água
por segundo do São Francisco. Deles, 12 são positivos, incluindo geração de
emprego, abastecimento para populações rurais e diminuição do êxodo rural. A
maioria mostra os efeitos nocivos do projeto, como perda de terras férteis,
redução da geração de energia elétrica, ameaça à fauna terrestre e risco de
reduzir a biodiversidade aquática.
É de espantar que uma obra que pretende levar a salvação para áreas
castigadas pela seca seja tão impactante para o ambiente. Mas quem vive e
depende hoje do rio sabe, na prática, que mexer no curso d’água traz
prejuízos. As barragens, quatro ao longo do Velho Chico, mudaram a sua
vazão. Agora, ela é artificial, com hora e volume definidos pelo computador.
O que nem sempre é compreendido por todos.
TARRAFAS VAZIAS
“A gente vévi desse rio, só que ele não tem mais força”, diz o pescador
Antonio Gomes de Carvalho, de 40 anos, que mora em Saramen, um povoado de
Brejo Grande (SE), na foz do São Francisco. Na sua tarrafa, sumiram os
dourados, surubins e piaus. Em vez deles, aparecem bagres, robalos e
carapebas, peixes marinhos ou de transição. A “língua salgada” é quem traz
as espécies. É a força do mar que inverteu a história do rio forte que
invadia o oceano. Há seis anos, o Pontal do Cabeço desapareceu debaixo
d’água e a maioria dos moradores se mudou para Saramen.
Com o controle das águas, pescador tem de virar microempresário. Ao menos
para os poucos que conseguem ser contemplados por projetos sociais. Na
barragem de Sobradinho (BA), o maior lago artificial do mundo, José Ribamar
Silva Machado, de 47 anos, é um exemplo. Ele foi inscrito num programa de
criação de tilápias em cativeiro. Recebe um salário mínimo, enquanto os
peixes ficam no processo de engorda. A sua canoa agora só desliza no curto
trajeto entre a beira do lago e as gaiolas. “E eu que conhecia pedra por
pedra daqui até Juazeiro.”
Histórias de pescador, quando verdadeiras, ajudam a construir um mosaico do
São Francisco que vem sendo ameaçado pela ação do homem. Outros personagens,
igualmente dependentes do rio, ajudam a completar esse retrato. O sertanejo
é um deles. Juvenal João da Silva, de 48 anos, é agricultor de Belém do São
Francisco (PE). Está a pouco menos de 10 quilômetros das margens do rio.
Vive da agricultura e da criação de bodes. Vive com falta d’água e sem
perspectivas para dar a seus filhos.
“Oxe, se me trouxessem o rio estaria bem de vida. O cabra aqui está ameaçado
de morrer de fome e seca”, diz o sertanejo. Ele é pai de nove filhos e avô
de quatro netos, todos habitando a mesma casa de reboco e poço no quintal,
abastecido com carros-pipa. O filho mais velho vive de tapar buracos com
areia nas estradas. Ganha R$ 3 por dia. Com a mulher, trabalha na roça de
outras pessoas. Na pequena propriedade que possuem, planta cebola, tomate,
feijão e arroz. Raras vezes há fartura na colheita. E a transposição, seu
Juvenal? “É um bom plano pelo que ocê tá me dizendo. Mas só a gente é que
não tem uma sorte dessa.”
Há séculos, o Velho Chico carrega o fardo da desigualdade. Seja próximo de
suas margens, no chamado Vale do São Francisco, onde projetos de irrigação
criam oásis de prosperidade bem ao lado de áreas paupérrimas. Seja longe
dele, no sertão nordestino, onde a pouca oferta hídrica faz com que muitos
vejam a transposição como a única solução para resolver os dramas sociais.
D. Pedro II, assim como os últimos presidentes, já dizia que o projeto era
prioritário para o Brasil.
VIDAS APERREADAS
Levar água do São Francisco para áreas remotas poderá aproximar vidas que
dificilmente se cruzariam um dia. Como os de Francisca Amaro da Silva, de 57
anos, e Maria Madalena da Conceição, de 51. A primeira trabalha à beira do
rio, na empresa Frutex. Colhe uvas das videiras que vicejam nas terras
irrigadas de Petrolina (PE). Recebe um salário mensal de R$ 270 por uma
jornada de nove horas diárias. Cearense, fugiu com o marido da seca 19 anos
atrás. Foi quando investiram o pouco que tinham numa pequena propriedade.
Não deu certo. Restou-lhe a graça de ter um trabalho. “Isso aqui só enrica
os donos. Para nós, dá para viver aperreada.”
Maria Madalena é índia cambiuá. Mãe de dez filhos, sem marido, vive
aperreada com a ajuda de programas federais como o Bolsa-Escola e Vale Gás
no município de Ibimirim (PE) ou da renda que a família obtém caçando e
vendendo pássaros nativos. Ela é um dos alvos do projeto de transposição, o
de beneficiar moradores que vivem longe do rio. “Tem dia que saio até de
noite na carrocinha do jumento para pedir água aos vizinhos, porque meus
filhos estão morrendo de sede”, diz. Tenta, sem sucesso, cultivar milho,
feijão, abóbora e mamona. “Não sei se alcanço de ver a água chegar.” Se a
seca persistir, admite até que seus filhos possam migrar dali.
De certa maneira, Rafaela Santos da Silva, de 6 anos, retrata o lado mítico
que muitos atribuem ao São Francisco. Vivendo próximo da Barragem de
Itaparica, a pequena pernambucana recorre a ele cada vez que um de seus
dentes-de-leite cai. Para ela, o Velho Chico têm o poder de cura.
As margens políticas de um rio
“Estão iniciando do fim para o começo”, resume o presidente do Comitê da
Bacia do São Francisco, José Carlos Carvalho, sobre a forma como o governo
se empenha em tocar o projeto de transposição do Rio São Francisco. É que
pela primeira vez, reconhecem os críticos à obra, a idéia de levar água do
Velho Chico para o semi-árido tem reais chances de sair do papel. “Não temos
posição radical contra, só entendemos que se deve discutir antes a melhor
solução.”
O presidente Lula já defendeu o projeto: “Não sei como alguém pode ser
contra levar um caneco de água para quem anda seis léguas com um pote na
cabeça, depois que a vaca já bebeu a água.” Até Marina Silva, hoje ministra
do Meio Ambiente (MMA), mudou de posição e agora defende a transposição. “Há
uma certa hipocrisia porque governos estaduais que são contra o projeto
dizem que as pessoas que estão à margem do rio passam fome”, diz o
secretário-executivo do MMA, Claudio Langone. “Como se também não tivessem
responsabilidade sobre elas e a culpa fosse toda do governo federal pelo
sofrimento pelo qual passam.”
Como se vê, as posições são políticas. O governo garante estar cumprindo
todas as etapas preliminares. Mas acredita que não é preciso primeiro
revitalizar para depois começar o trabalho dos tratores. Quer fazer as duas
coisas ao mesmo tempo. Para 2005, já reservou R$ 1,078 bilhão para as obras
físicas. No mês que vem, o Ibama inicia audiências públicas para discutir o
licenciamento ambiental. Os críticos dizem que é preciso recuperar o
paciente anêmico, o Rio São Francisco, antes de torná-lo doador de suas
águas.
DISCÓRDIA
O Comitê da Bacia do São Francisco, assim como os Estados de Alagoas, Bahia
e Sergipe, é contra o uso da água para projetos de irrigação, como prevê um
dos canais da transposição que beneficiará Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio
Grande do Norte. Esse é o principal ponto da discórdia com o governo. No
projeto defendido pelo ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, e
modificado pelo empenho de Marina Silva, questões polêmicas foram suprimidas
da proposta original.
Dos sete canais iniciais, apenas dois serão executados. A idéia de repor o
São Francisco com águas do Rio Tocantins, numa segunda transposição, foi
descartada. E o bombeamento de 63 metros cúbicos por segundo só ocorrerá
quando a Represa de Sobradinho tiver com um nível superior a 94% de sua
capacidade.
Promotores públicos recomendaram à Agência Nacional da Águas (ANA) que ela
não conceda a outorga que viabiliza o projeto antes de encerrar as
discussões prévias. E ameaçam mover uma ação civil pública, caso a ANA não
respeite o cronograma. O governo, interessado numa obra emblemática, corre
contra o tempo e sinaliza com propostas de revitalização do Velho Chico como
uma compensação. Sugere a criação do Parque Nacional do Cânion do São
Francisco e da Área de Proteção Ambiental da caatinga, ambos na Barragem de
Xingó, entre Alagoas e Sergipe, e mais oito unidades de conservação ao lado
dos dois canais da transposição.
O Velho Chico, descoberto por Américo Vespúcio num dia de São Francisco de
Assis, assiste à disputa como sempre fez em seus 503 anos: seguindo rumo a
um futuro desconhecido. E.N.
Projetos não garantem progresso
A poucos metros das margens do Velho Chico, em Juazeiro, Bahia, está em fase
de construção o projeto Salitre, mais uma obra de irrigação da Companhia de
Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Se
forem concluídas as cinco etapas, serão 31,3 mil hectares de terras
irrigadas numa das áreas mais promissoras para a fruticultura do País. Por
enquanto, é uma versão resumida das contradições que o grande projeto de
transposição pode provocar.
Tecnicamente, o projeto Salitre apenas fará o transporte de água de uma
região para outra por meio de canais. Na primeira etapa, serão 18
quilômetros de aquedutos para irrigar 5,1 mil hectares. Só que a obra,
iniciada em 1998 e com 99% de sua primeira etapa já concluída, segue em
ritmo lento. Não produz um único fruto, nem beneficia os moradores pobres da
região. Eles não têm água nas torneiras, nem para as suas pequenas hortas.
Pior: seu único rio secou.
“Você já tinha visto curimatã morrer assim”, pergunta o lavrador José dos
Santos Ribeiro, de 46 anos, apanhando, ainda vivos, peixinhos na mão num dos
pontos em que o Rio Salitre vira um fio de água. Há anos, ele deixou de ser
um curso natural. Com a fertilidade do solo, bombas de irrigação de
proprietários rurais secaram o Salitre. Para tentar suprir a demanda maior
que a oferta, a Codevasf construiu barragens galgáveis, “subindo” com a água
do Velho Chico ao longo desse rio. Foi um fracasso.
Desta vez, como outra das propostas de revitalização do São Francisco, o
governo acena com a construção de uma adutora do canal de irrigação para o
Rio Salitre. Levará 0,5 metro cúbico (500 litros) por segundo. É uma obra de
remendo. Mas vista como a última esperança pelos pequenos lavradores. Do
projeto Salitre, eles não alimentam ilusões. Poucos terão dinheiro para
comprar parcelas de terras irrigadas – R$ 250 por hectare, mais os custos
mensais de manutenção com energia elétrica e água.
Essa é outra distorção que um projeto de irrigação produz. O Salitre, como
outros ao longo da Bacia do São Francisco, prevê que 80% das terras
irrigadas sejam distribuídas entre grandes empresários. Só 20% ficarão à
disposição dos pequenos produtores. É dentro dessa perspectiva de
distribuição fundiária que o projeto em Juazeiro deve ser concluído. Quando
as cinco etapas ficarem prontas, em até dez anos nas previsões otimistas, o
consumo será de 42 metros cúbicos por segundo, praticamente o mesmo da média
do eixo norte do projeto de transposição para o semi-árido.
Uma das maiores críticas de ambientalistas em relação ao projeto de transpor
o São Francisco é o mau uso da água mesmo nas bacias receptoras. Ela não
faltaria no semi-árido, mas estaria sendo armazenada de forma errada.
Cisternas e barragens subterrâneas poderiam reter a água das chuvas. Nos
açudes, muito do líquido retido é evaporado.
O governo rebate e diz que incentivará a construção das cisternas e
barragens subterrâneas. E com os canais vindos do Velho Chico abastecendo
constantemente os açudes, a água poderia ser utilizada e não precisaria
ficar exposta à evaporação. No açude Poço da Cruz, em Ibimirim (PE), tudo
isso já poderia estar sendo testado. Com as chuvas do início do ano, ele
está cheio. Só que os projetos de irrigação abaixo da barragem estão parados
há quase dez anos. Os produtores que podem recorrem aos poços artesianos. E
os moradores, à lata d’água na cabeça, cena ainda comum no Nordeste. E.N.
Revitalizar o rio, ainda um sonho
No lugar da mata de topo, eucaliptos e pastos. Em vez de mata ciliar, as
taboas, planta que invade áreas alagadas poluídas. No leito do rio, bancos
de areia formam ilhas e praias, algumas até com campo de futebol. Os riachos
e ribeirões carregam o esgoto das cidades. Os seus afluentes, castigados com
tanta destruição, definham. E o São Francisco se vê, a cada dia, mais
solitário na sua luta pela sobrevivência.
Janaúba, no norte de Minas, retrata um pedacinho do descaso para com o Velho
Chico. A cidade de 62 mil habitantes é cortada pelo Rio Gorutuba, um dos
primeiros contemplados com o programa de revitalização da Bacia do São
Francisco. Ele é um afluente indireto, alimentando antes o Rio Verde Grande.
Depois da construção de uma barragem, virou perene, mas sua vida piorou.
Plantações irrigadas de banana se aproximam das margens e as taboas tomam
conta de grande parte do seu leito.
“A barragem é filha do rio. Nunca que uma filha pode ficar acima da mãe”,
reflete a lavadeira Ana Fernandes Lima, de 56 anos. “Isso era um mar de
água. Agora virou uma lagoa.” O projeto da Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural de Minas Gerais (Emater) prevê a recuperação de nascentes
acima da barragem, a preservação de morros e a conservação de solos, a um
custo de R$ 2 milhões. Nada propriamente em Janaúba. “Não acredito que isso
vai revitalizá-lo”, diz o coordenador da Emater Ildeu de Souza. “São ações
muito pontuais. Vamos fazer apenas áreas demonstrativas de como deveria ser
feito.”
ÁGUA PRECIOSA
Em Funilândia, na Grande Belo Horizonte, graças ao Projeto Manuelzão,
proprietários rurais aprenderam a preservar nascentes de um dos afluentes do
Rio das Velhas. É água preciosa que desemboca no rio já poluído vindo da
capital mineira. O policial Sergio Pinto de Paula, dono de 100 hectares da
Fazenda Luma, acreditava que mata ciliar, de topo, curvas de nível e
desassoreamento tivessem importância só no papel. Hoje, ele é um dos maiores
defensores dessas técnicas.
“Tenho o registro 001 da região”, diz o policial, com orgulho, mostrando as
áreas onde plantou mais de 12 mil mudas de espécies nativas – no município
foram 35 mil. As nascentes agora ficam cercadas e a boiada não se aproxima
mais delas. Tira o gado, tira o pasto e a água brota. Simples e eficiente.
Sergio Pinto de Paula sabe que ele representa uma gota mínima de
contribuição para a vitalidade do São Francisco. Por enquanto, recebeu do
projeto apoiado pela Agência Nacional das Águas (ANA) e pela prefeitura as
cercas, os mourões e as mudas de árvores. O resto vem do seu próprio bolso.
Talvez por esse motivo tantos outros proprietários rurais tenham pouca
preocupação em preservar a água de riachos, ribeirões e rios. Pela lei do
mercado, sai mais barato explorar do que preservar. É nessas horas que entra
o Estado. Para tocar o projeto de transposição, rebatizado de interligação
de bacias do São Francisco, o governo colocou na agenda a sua revitalização.
Neste ano, segundo os Ministérios da Integração Nacional e do Meio Ambiente,
serão investidos R$ 26 milhões na recuperação do Velho Chico e de seus
afluentes, como o Verde Grande e o das Velhas. Já começaram a ser gastos
outros R$ 620 milhões do Ministério das Cidades em saneamento. Para 2005,
quando o governo pretende iniciar as obras físicas, a revitalização prevê R$
100 milhões. Difícil imaginar que até 2014 chegará aos R$ 5,2 bilhões
necessários para devolver a vida que tiraram do São Francisco, como almeja a
ANA. Eduardo Nunomura