Publicada em 15 de maio de 2005
O Estado de S. Paulo
“Entra, entra, entra”, berrou um homem armado, empurrando Amanda para dentro
do carro. “Se abrir os olhos, você morre.” Em segundos, ela pulou para o
banco de trás fechando com força os olhos até sentir dor. Sentiu a presença
de outro bandido com uma arma na perna. O veículo em disparada, fazendo
ultrapassagens frenéticas, a fez temer pela vida. Chovia e fazia 15º C em
São Paulo, onde mais um seqüestro começava. O 46.º daquele ano, 2004.
Nos minutos seguintes, horas talvez, Amanda pensou em muitas coisas, mas
sobretudo na família. Estariam preocupados? Todos já sabiam. Uma irmã, que
estava com ela no local do crime, um bufê infantil de Moema, começou a
digitar no computador: nome da vítima, telefone, marca e placa do carro,
descrição dos suspeitos. A polícia seria informada.
Na fuga, os homens mandavam Amanda parar de chorar. Gritavam. Mas tentavam
acalmá-la. Diziam que era um assalto e só queriam levar o carro, um Citroën
Xsara Picasso prata. O celular de Amanda começou a tocar. Era a mãe dela.
Não atendeu. Já os bandidos negociavam com outra pessoa por um celular,
procuravam um comparsa em algum ponto da zona sul. “Estamos passando pelo
(supermercado) Extra da (Ponte) João Dias.” Quando o carro parou, um
terceiro homem truculento anunciou: “Isso é um seqüestro.”
Amanda, então universitária de 22 anos, estremeceu. Fez xixi nas calças.
Ficou menstruada antes do tempo. Sem ter noção, ela passava a ser parte da
estatística da violência urbana. Personagem involuntária de um crime que
apavora em São Paulo e outras capitais brasileiras.
No ano passado, foram 112 casos no Estado. Menos que a epidemia que se
alastrou entre 2001 e 2002, quando se chegou aos picos de 307 e 321. Nos
três primeiros meses deste ano, foram 28 casos – igual à média trimestral de
2004. Na semana passada, havia 7 pessoas em cativeiro – nos piores anos,
houve dias com 18 seqüestros em curso. Algumas quadrilhas surgiram desde
então, mas a prisão de líderes e sua condenação a penas de mais de 20 anos
têm reduzido esse crime.
“Eram muitos casos e éramos poucos. Policiais sofriam de síndrome de pânico.
Fui internado num hospital com estafa”, lembra o delegado-titular Wagner
Giudice, da Divisão Anti-Seqüestro (DAS), hoje com 130 bem treinados
policiais, quase o triplo de quatro anos atrás. Criada em setembro de 2001,
a DAS descobriu que a epidemia desse crime surgiu a partir de um grupo de
Americanópolis, na periferia da zona sul. Eram cerca de 30 jovens de menos
de 25 anos, ex-ladrões e poucos líderes que agiam rapidamente. Apanhavam as
vítimas e em dois dias obtinham alguns milhares de reais. “Faziam quase sem
querer, mas dava certo.”
TECNOLOGIA
O crime evoluiu com os erros e acertos. Um bandido mais velho, Nelson
Piedade, hoje preso e condenado a vários anos de prisão, ensinou os mais
jovens a refinarem os seqüestros. Conhecer bem o terreno da entrega do
resgate foi uma tática ensinada. Isso evitaria prisões. Outra lição era
ameaçar sempre a família e exigir que a DAS não entrasse nas negociações.
Contatos só por celulares clonados, impossíveis de serem rastreados. Foi o
que fizeram os seqüestradores de Amanda.
“Ligavam sempre de um celular em cima de uma moto”, lembra a irmã mais velha
de Amanda, que mal ouvia o que falavam por causa do barulho da motocicleta
em movimento. Desde o primeiro dia ela se tornou a negociadora da família.
Metódica, anotou os locais das chamadas num mapa da Grande São Paulo com
informações da DAS. Butantã, Lapa, Socorro, São Bernardo do Campo, Campo
Belo, Diadema, Capão Redondo, Osasco, entre outros pontos, receberam
pequenos alfinetes.
“Eles vêem filmes americanos e acham que a polícia brasileira pode rastrear
as chamadas.” O rastreador só localiza as estações radiobase, que têm uma
grande área de cobertura, com diversas ruas e avenidas. E as ligações dos
seqüestradores de Amanda foram muito rápidas, a maioria de menos de dois
minutos. Não dava para ter idéia de como estava Amanda.
TERROR
Numa favela da zona sul, Amanda sofria. Nenhuma violência física, mas muita
verbal. Testavam-na o tempo todo, com interrogatórios noturnos. “Era o meu
terror. Perguntavam sobre tudo. Eu sabia que tinha de bater com o que minha
família dizia a eles.” Um sofrimento que se iniciou numa terça-feira e
parecia não ter fim desde que ela foi arremessada na direção de um colchão
indigente, uma manta fedorenta e um arremedo de travesseiro.
As primeiras ordens a serem cumpridas foram: mirar fixamente a quina de duas
paredes, nunca olhar para trás, sussurrar sempre, fazer muito pouco barulho.
Para ir ao banheiro, tinha de pedir, e nunca podia fechar a porta. O
cativeiro cheirava mal. O piso de azulejo irregular não escondia a pobreza
da construção. Todas as janelas da casa térrea haviam sido pintadas de
prata. Na primeira noite, ela se enrolou na coberta e achou que iria morrer
sufocada. Ela só chorava, mas não ousou desobedecer a nenhuma das regras.
Em compensação, não passou fome. Os seqüestradores atenderam seus pedidos
por sanduíche de mortadela, iogurte, frutas, sucos e refrigerantes. Podia
ver novela, mas só quando permitiam. O resto do tempo tinha de ouvir em alto
volume programas como Cidade Alerta. Eles queriam saber se estavam sendo
perseguidos, se tinham virado notoriedade no mundo do crime. Amanda nem
desconfiava o que se passava na casa da irmã, a negociadora da família.
“Na primeira chamada, exigiram que não falássemos com a polícia”, recorda a
irmã. Foram três ligações rápidas e ríspidas. No terceiro dia, pediram o
resgate: US$ 1 milhão. Um investigador orientou a mentir que estavam
quebrados financeiramente, logo reduziriam o valor. “A calma dele não estava
em sintonia com nosso estado de espírito.” Os três dias seguintes foram
desesperadores. Não houve telefonemas. A família temeu pelo pior. Mas tudo
estava dentro do script nos casos de seqüestro.
Fim de semana: folga no seqüestro
Só depois de 17 dias, ela pôde tomar seu primeiro e único banho no cativeiro
É comum nos fins de semana, que para criminosos pode começar na sexta ou
terminar na segunda-feira, haver uma pausa nas negociações. Bandidos têm
vida dupla. Nas suas casas, vivem com mães, mulheres e filhos. A maioria dos
parentes não imagina que dormem com seqüestradores, pois eles se fingem de
trabalhadores sérios e ocupados. Nos fins de semana, divertem-se e até
viajam para a praia ou o campo. Depois voltam aos cativeiros para
aterrorizar vítimas como Amanda.
“Um dia o negociador chegou puto porque desconfiou que seu celular estava
grampeado. Ninguém falou comigo e achei que planejavam minha morte.” A noite
custou a passar. A favela, Amanda tem certeza de que estava numa, já havia
silenciado. Ao contrário do período diurno, quando ouvia sons vindos da rua,
como mulheres falando alto, crianças brincando, caminhões de gás, afiadores
de facas e tesouras, e pagodes e funk numa casa distante. O silêncio daquela
madrugada só foi interrompido pelo apito de um vigia noturno.
No 9.º dia, foram quase 20 ligações. Em uma delas, o bandido negociador foi
claro:
– Isso é uma empresa para mim e ela, uma mercadoria.
– Então sou uma empresária e não vou pagar se não vir o produto.
Poucas horas depois, a irmã recebeu a prova que pedira. Um amigo da família
buscou uma carta numa estrada. Ao chegar com um envelope, todos ficaram
chocados com a imagem que mostrava Amanda acorrentada, com facas e armas
apontadas para a cabeça. Sangue escorria de sua cabeça. Era catchup,
tentaram tranqüilizar os policiais da DAS. Como acreditar que a foto, de
fato, era uma montagem? Àquela altura, a família tinha reunido R$ 5 mil. Era
muito pouco, rebateram os bandidos.
‘FILHO DO CAPETA’
Os dias se passaram, com uma interrupção no fim de semana seguinte. Na
retomada das negociações, a irmã avisou: “Conseguimos R$ 20 mil. É tudo o
que temos, estamos quebrados.” O seqüestrador, talvez um jovem de mais de 25
anos, de fala correta e cujo único destempero verbal era se dizer “filho do
capeta”, achou que podia conseguir mais dinheiro. Irritou-se com a súbita
elevação do resgate. A irmã, uma comerciante de 32 anos, lembrou da conversa
que teve com uma amiga, paranormal, naquele 14.º dia de sofrimento.
“Minha amiga me disse que a Amanda estava bem, que iria sair dessa e só
devia acalmar o seqüestrador. Disse para falar dos meus filhos a ele”,
lembra a irmã. “Isso mudou o comportamento dele.” No cativeiro, Amanda não
sentiu a diferença. “Você está acabando com a minha esperança. Se não me
mandarem embora, vou me matar.” Eles acreditaram. Os dois vigias que
permaneciam quase 24 horas ao lado dela não lhe deram mais facas para
jantar, sua única refeição diária.
No 16.º dia, a irmã de Amanda ligou para o número gravado no celular. Foi
xingada de “louca”. Nova ligação. Sem saber, sua ousadia conseguiu acalmar o
seqüestrador, que imaginava que nenhum familiar ligaria se a polícia os
estivesse rastreando. Mas estava. Seqüestradores detestam que a DAS se
envolva por dois motivos. Primeiro, pelo risco que correm. Segundo, porque a
experiência desses policiais faz com que negociações milionárias despenquem
para alguns milhares de reais. “Você é um prejuízo para nós”, acusou o
bandido negociador à vítima.
Amanda se desesperou com a frase, mas encontrou consolo de uma forma
inusitada. No cativeiro, escutava quase diariamente uma menina da vizinhança
cantar músicas em inglês sofrível. “Num dia que estava chorando muito, ouvi
a garota falar: ‘Ah, você está tão triste. Não fica assim, não. Eu sou tão
feliz!’ Parecia que era comigo.” Por coincidência, os bandidos permitiram
que a vítima tomasse um banho – o primeiro e único em 17 dias. Ela fedia.
Seu cabelo sempre antes tratado num cabeleireiro dos Jardins estava duro. As
poucas gotas que caíam daquele chuveiro jamais poderiam limpar seu corpo,
lembra ela.
TENSÃO FAMILIAR
Novo dia de silêncio e a angústia familiar virou uma troca de acusações
desnecessárias. A irmã de Amanda ficou estressada. O marido dela também. A
mãe mais ainda. O marido desta, padrasto da vítima, se desentendeu com
todos. “Entreguei o celular para meu padrasto e fui embora.” No dia
seguinte, irritado com a troca de negociador, o seqüestrador disse: “Vamos
acabar logo com isso.” Era a penúltima de suas 63 ligações.
O dinheiro foi levado por um taxista. Pelo celular, ele ouvia instruções.
Circulou mais de três horas pela cidade. Houve outros casos em que a entrega
do resgate durou até oito horas. Numa estrada, ao passar por cima de um
viaduto, o motorista arremessou o resgate de R$ 25 mil. O pacote caiu na via
inferior. É uma das táticas utilizadas pelo seqüestradores. Provavelmente,
um carro vigiava o táxi a distância, enquanto motoqueiros apanhavam o
dinheiro e fugiam.
No cativeiro, na noite do 20.º e último dia, Amanda ouviu o portão de ferro
da casa se abrir. O carro velho custou a dar partida. Ela recebeu a ordem:
“Chegou a hora. Se você olhar vou te metralhar.” A universitária se encheu
de alegria, mas de medo também. Vestiu a camisa do seqüestrador e fechou os
olhos. Não lembra se o percurso de volta durou minutos ou horas. Foi deixada
no Jardim São Luís, na zona sul. “Me disseram para contar até 100 com os
olhos fechados. Contei e quando abri dei de cara com uma favela gigantesca.”
Foi a primeira visão de uma vida em liberdade. Eduardo Nunomura
Uma cicatriz que demora a sair
Parente vive trancada dentro de casa, toma remédios e não quer mais trabalhar fora
O primeiro abraço na mãe e na irmã. O primeiro banho, quente, prolongado e
cheiroso. As visitas e o carinho dos amigos. O conforto do apartamento
recém-reformado e decorado. O pior parecia ter passado para Amanda, após os
20 dias de seqüestro. “Semanas depois, meu pesadelo começou. Minha casa
virou um cativeiro.”
Amanda se tornou vítima do transtorno do stress pós-traumático, que pode
atingir pessoas que passaram por fortes tensões, como seqüestros, seqüestros
relâmpagos e assaltos com reféns. Com maior ou menor intensidade, apresentam
medo, ansiedade, angústia, insônia, depressão, falsos reconhecimentos,
afastamento afetivo. “A pessoa não vive mais”, diz o psiquiatra Eduardo
Ferreira-Santos, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas.
“Podemos curar a ferida, mas fica uma cicatriz que demora a sair.”
A violência urbana faz com que as vítimas vivam num permanente estado de
tensão. Sobreviventes de guerra sabem que a batalha acabou. Os seqüestrados
têm a certeza de que a batalha deles ainda é uma ameaça constante. Amanda
fez três meses de terapia com a equipe de Ferreira-Santos. No seu grupo
havia três vítimas de seqüestro e quatro de seqüestro relâmpago. Foi
atendida pelas psicólogas Irene Erlinger Calabrez e Kátia Camargo Ferreira,
voluntárias do serviço no HC.
“Amanda chegou muito assustada, com olheiras profundas e envelhecida. Um
trapo humano”, lembra Irene. Os dias no cativeiro foram suficientes para
agravar problemas adormecidos na vida da vítima – drogas na família, pais
separados, carência paterna. Nas primeiras sessões, como outros pacientes,
Amanda só chorava, enrolava um pequeno pano e roía as unhas, mania que
permanece. “A lembrança fica para sempre, às vezes mais escondida, mas que
pode aflorar a qualquer momento”, explica Irene.
Antes de começar a terapia, Amanda vigiava a rua o tempo todo da janela do
apartamento. Ligava de madrugada para a portaria ao menor sinal de movimento
na entrada do prédio. Não dormia sem remédios. Raras vezes saía de casa.
Hoje permanece o medo de que bandidos entrem pela janela do banheiro, que dá
para o corredor do andar.
Amanda tem razão em se sentir perseguida. Durante o seqüestro, descobriu que
toda sua vida era conhecida dos criminosos. Detalhes que até ela não
percebia. Duas vezes antes tentaram levá-la. A universitária mantinha uma
rotina quase suíça. E até hoje ela não sabe se os seus seqüestradores estão
soltos. A Divisão Anti-Seqüestro (DAS) conseguiu prender dois envolvidos,
mas entre quatro e cinco bandidos continuam nas ruas. O bando é responsável
por outros quatro casos. O cativeiro nunca foi descoberto.
A DAS tem hoje um banco de dados com mil casos de seqüestros em São Paulo.
Há informações que vão desde o nome dos bandidos, telefones, vozes gravadas,
cativeiros e respostas às perguntas “como, quando, onde e por quê”. Já há
600 endereços de cativeiros, características das vítimas, valores dos
resgates e horário preferido pelos criminosos (início da manhã e da noite).
Mas isso pouco conforta o drama das vítimas. “O trauma sempre vai persistir.
Tenho pena delas. Penso muito nas famílias”, diz o delegado-titular da DAS,
Wagner Giudice. Ele próprio é vítima da violência urbana. Seu pai morreu no
1.º de janeiro de 2000, assassinado. “Preferia que tivesse sido um
seqüestro, porque eu o traria de volta.”
DESESTRUTURAÇÃO
A família de Amanda se distanciou. Mãe e filhas conversam muito pouco. A
irmã mais velha acredita que seja para evitar lembranças do seqüestro. Ela
continua transtornada, um ano depois. “Quando acaba, a seqüela é para todos.
Tomo remédios, não saio mais de casa, abandonei o trabalho, não quero mais
fazer parte da sociedade”, confessa. “Hoje vivo no meu quarto, olho para o
jardim por meio de uma janela com grades. Quem está preso somos nós.”
Para o psiquiatra Ferreira-Santos, o maior desafio para tratar pacientes
como Amanda e seus parentes é fazê-los deixarem de se ver como vítimas para
se sentirem sobreviventes. Encarar a violência tal como uma perda, algo que
passou e não volta mais. Mas a dificuldade, segundo ele, é que poucos vêem o
lado dos pacientes, que se sentem abandonados. “Qualquer bandido tem ONG 1,
ONG 2, direitos humanos que cuidam deles. A vítima não tem.”
Amanda retomou a faculdade. Seus amigos não falam mais do seqüestro. Ela
trabalha agora em casa. Quando hoje pensa no seu pesadelo, não esconde que
gostaria de ver os bandidos punidos. “Queria que morressem todos, para ser
sincera.” E explica: “O seqüestrador não quer ter dinheiro para sustentar
uma família, roubar um pão para dar a um filho. Só quer ter mais que você.
Mas ele está acabando com a sua vida, a minha vida.” E.N.
Onde procurar ajuda:
Hospital das Clínicas:3069-6576 Unifesp: 5575-1677