Publicada em 7 de junho de 2009
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
A Jureia está partida. Nativos e veranistas se entreolham, desconfiados.
Isto em razão da lei de 2006 que uniu parques, reservas de desenvolvimento
sustentável, estações ecológicas e refúgios de vida silvestre no Mosaico de
Unidades de Conservação Juréia-Itatins, área de 110,8 mil hectares no Vale
do Ribeira e litoral sul do Estado de São Paulo. O governo estadual move
mais de 150 processos contra aqueles que não são de comunidades tradicionais
da área – e outras centenas estão por vir.
O Estado tem pressa por causa de uma ação que tramita no Tribunal de
Justiça que acaba com o mosaico e restabelece que a área deva ser
integralmente protegida. Mas os nativos temem não ter meios de sobrevivência
se os veranistas forem embora.
Na reserva de desenvolvimento sustentável (RDS) Barra do Una, onde um rio
antes cheio de peixes serpenteia a mata atlântica para atingir uma praia
preservada, as conversas se restringem a quem fica e quem sai.
Dos 130 imóveis da Reserva de Desenvolvimento Sustentável cadastrados pela
Fundação Florestal, gestora do mosaico, só há moradores tradicionais em 31
deles. O restante é composto de ocupantes eventuais, os veranistas. A
maioria deles terá de sair.
“Está um clima muito ruim. Tínhamos amizade com os veranistas e agora eles
nos olham como se fôssemos os culpados por terem de sair”, explica Benedito
Pinto, de 50 anos. Dito vive da pesca, da venda de bebidas e salgados no
verão e das reformas de casas. Deveria estar feliz porque finalmente pode
ampliar seu teto. Mas sua reforma destoa em meio a dezenas de imóveis
lacrados com blocos de concreto. “Se as coisas piorarem, vou ter de ir
embora.”
Nas últimas décadas, caiçaras e caboclos criaram uma relação de dependência
com os veranistas. Foram condenados a um eterno subdesenvolvimento. Com a
pesca rendendo menos de um salário mínimo por mês, eles viraram caseiros dos
que passavam férias ou fins de semana na Jureia.
Muitas casas de verão foram erguidas quando o mosaico nem era uma estação
ecológica, criada em 1986 para proteger 79.830 hectares de mata atlântica
ameaçados de abrigar uma usina nuclear. Desde então, os governos não
conseguiram regularizar a situação fundiária, medida assumida pela atual
gestão (mais informações na pág. A27). O problema é que a regularização vem
abrindo feridas.
“Sou pescador, mas só de pesca não se sobrevive mais na Jureia”, afirma
Francisco Carlos Isquierdo, de 45 anos. Ele cuida de quatro casas de
veranistas, mas uma delas já foi lacrada.
As ações civis públicas, movidas pela Procuradoria-Geral do Estado, não
indenizam os veranistas e os obrigam a destruir os imóveis e recuperar,
ambientalmente, as glebas. “Lacraram casa de gente que vinha há mais de 30
anos. O pessoal está apavorado com as ações.” Ao menos, Chiquinho ganhou de
um ex-veranista as telhas velhas da casa atualmente em destruição.
O diretor executivo da Fundação Florestal, José Amaral Wagner Neto, garante
que o governo vai criar programas de renda para os nativos que poderão
ficar. “Vamos criar alternativas para que eles não dependam dos ocupantes
irregulares”, afirmou, citando como exemplos a criação de centros de
trabalho e até transferência de renda.
A fundação apontou 112 famílias tradicionais em todo o mosaico da Jureia.
Apelidada por moradores como a “Lista de Schindler”, pois só quem está nela
poderá ficar, ela dá uma dimensão de quantos ainda deverão sair. Há mais de
450 glebas cadastradas.
“Há um clima de terror”, resume Albert Carrady Reuben, diretor da Associação
dos Moradores e Ocupantes da Barra do Una, criada para defender o interesse
dos veranistas. Dono de uma casa de 180 metros quadrados, com três
dormitórios e um ofurô com vista para a mata atlântica, Reuben afirma que
chegou antes da estação ecológica e agora responde a uma ação na Justiça. Na
visão dele, nada está sendo feito com transparência pelo Estado. “Na
verdade, só estão gerando conflitos, divisões e ameaças.”
INDENIZAÇÃO
O presidente da União dos Moradores da Jureia, Dauro Marcos do Prado,
acrescenta: “Não dá para usar de força bruta, lacrando ou demolindo casas,
nem mentir à comunidade, dizendo que a casa do veranista vai ficar para
nós.” Com a criação do mosaico, seu imóvel permaneceu na estação ecológica e
ele terá de sair. Nascido na Jureia, Prado não foi considerado morador
tradicional, mas seu irmão Valdir, sim. Nesta situação, o governo deve só
indenizá-lo. Seu irmão receberá a indenização e será realocado para uma RDS.
“O que chama atenção é que o Estado adota tratamentos diferenciados. A RDS
do Una é uma terra devoluta, pública, e a do Despraiado é particular,
privada”, argumenta Plinio Melo, da organização não governamental Mongue.
“Na Barra do Una, haverá demolições; no Despraiado, pagamento de
indenização; e no meio disso tudo, o falso discurso da preocupação
ambiental.” A Mongue fica na Jureia. Embora desenvolva projetos de
preservação da cultura caiçara, Melo já recebeu a notificação da Fundação
Florestal de que não é bem-vindo.
Quem ficou fora da lista tem até quarta-feira para pedir sua inclusão. Um
conselho criado pela Fundação Florestal analisará caso a caso e dará a
resposta até 30 de julho. “A regularização fundiária vai seguir normalmente
e é um processo negociado com a comunidade tradicional”, afirma Wagner Neto.
“Mas não restará RDS para veranista de fim de semana.”
Lei do mosaico deverá ser criada novamente
O atual mosaico Jureia-Itatins pode estar com os dias contados. Nas próximas
semanas será concluída a votação de 25 desembargadores do Tribunal de
Justiça de São Paulo, decidindo se houve “vício de origem” na lei que o
criou. O relator do processo, Mário Devienne Ferraz, já considerou que ela é
inconstitucional. No seu entender, os deputados estaduais José Zico Prado e
Hamilton Pereira (ambos do PT) não poderiam propor a criação da Lei 12.406,
tampouco o ex-governador Cláudio Lembo (então PFL) deveria sancioná-la em
dezembro de 2006.
Segundo o Estado apurou, o governo estadual considera perder o caso, tenta
ganhar tempo antes da decisão judicial, mas já trabalha com a hipótese de
enviar um novo projeto de lei. Nesta situação, vai propor novamente um
mosaico, mantendo o atual desenho de unidades de conservação, porém com
ajustes pontuais. Entre eles, ampliar a reserva de desenvolvimento
sustentável (RDS) Barra do Una, permitindo que os pescadores tenham mais
acesso ao Rio Una, e criar mecanismos eficientes para indenizar os moradores
não tradicionais que vão ter de sair.
Alvo de ações predatórias, com palmiteiros e caçadores agindo livremente em
seu interior, a Jureia é ainda um santuário preservado. Emoldurados pelos
maciços da Jureia e de Itatins, com montanhas de 1.500 metros de altitude,
os brejos, dunas, lagunas, mangues, restingas e uma extensa faixa litorânea
compõem uma paisagem única da mata atlântica. O milagre da preservação
ocorreu pela existência de uma estação ecológica, o mais restrito modelo de
unidade de conservação. Nela, em tese, só seriam permitidas pesquisas
científicas.
Antes de ser criada a estação ecológica, a Jureia era habitada. Havia
caiçaras, que até hoje preservam danças, crenças, artesanato e pesca com a
tarrafa (pequenas redes). Depois, pela falta de fiscalização, vieram
posseiros, fazendeiros, grileiros, meeiros, mateiros, palmiteiros,
“caxeteiros” (que exploram a madeira da caixeta na produção de lápis). A
situação criou um impasse que a lei do mosaico quis resolver.
PLANO DE MANEJO
Com o mosaico, o governo estadual se mobilizou para criar o plano de manejo
para os 110.813 hectares. A Universidade de Campinas e o Instituto
Socioambiental reuniram 72 pesquisadores para diagnosticar cada uma das
unidades de conservação. Ele já está praticamente pronto. O estudo definirá
a vocação de cada pedacinho da Jureia. Na RDS Barra do Una, pesca e turismo.
Na do Despraiado, exploração sustentável da caixeta e do palmito. Nas
estações ecológicas, pesquisas sobre a mata atlântica. Nos parques,
visitação e educação ambiental.
A viabilidade de um plano de manejo, contudo, exige antes uma tarefa ingrata
para qualquer político: regularizar as terras. A Fundação Florestal é
responsável pela indicação das próximas ações judiciais em nome do Estado.
“A regularização fundiária vai seguir normalmente, em qualquer hipótese, no
atual mosaico ou até numa eventual nova lei de mosaico”, assegura o diretor
executivo da fundação, José Amaral Wagner Neto.
“Estamos entrando com ações só contra as ocupações irregulares nas novas
unidades de conservação de uso sustentável”, sustenta o procurador do Estado
Jaques Lamac, coordenador da Defesa do Meio Ambiente. “Mas vamos ingressar
com novas ações, porque o objetivo é fazer a regularização fundiária de
todas as unidades de conservação.” Em outras palavras, nos próximos meses
mais partes da Jureia ficarão desertas. Vitor Tereza, de 86 anos, que ainda
pesca em canoa de madeira, lamenta. “Isso vai virar um balaio de gato e
ninguém nunca mais se entenderá”, afirma. EDUARDO NUNOMURA
DÉCADAS DE CONFLITOS
Anos 1970: Abertura de estrada para a Jureia, no litoral sul paulista.
Veranistas compram terras para construir casas e caiçaras prestam serviços
em pousadas, camping e como caseiros
Início dos anos 80: A Nuclebrás planeja construir duas usinas nucleares e
uma construtora queria erigir uma cidade ecológica para 70 mil habitantes
Janeiro de 1986: Por mobilização de ambientalistas, é criada a estação
ecológica Jureia-Itatins. Muitos moradores abandonam o local e migram para
Peruíbe
Anos 90: Embora proibido, moradores passam a viver do turismo, tolerado
pelo poder público, que leva serviços essenciais
Dezembro de 2006: Deputados criam o mosaico da Jureia, união de unidades de
conservação
2008: Governo estadual inicia regularização fundiária das áreas protegidas,
movendo dezenas de ações contra veranistas
Publicada em 11 de junho de 2009
Tribunal de SP derruba Lei do Mosaico da Jureia
O órgão especial do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo decidiu ontem pela
inconstitucionalidade da lei que criou o Mosaico Jureia-Itatins. O principal
argumento dos desembargadores é o de que houve um vício de iniciativa, uma
vez que a legislação foi criada a partir de um projeto de deputados. A
Procuradoria-Geral do Estado espera a publicação do acórdão, que só ocorrerá
daqui a alguns dias, para decidir se entrará com recurso. Na prática, como o
Estado publicou no domingo, o governo considera o caso perdido.
“A decisão (do TJ) deixa claro que só o Executivo pode regulamentar sobre
esse assunto”, afirmou o procurador Jaques Lamac, coordenador da Defesa do
Meio Ambiente. O mosaico foi criado em dezembro de 2006 e era a reunião de
unidades de conservação criadas predominantemente sobre a área da antiga
Estação Ecológica Jureia-Itatins. O modelo serviria para resolver conflitos
fundiários de ocupantes antigos.
O relator da ação de inconstitucionalidade, Mário Devienne Ferraz, entendeu
ainda que para a criação do mosaico era necessária a existência prévia de um
estudo de impacto ambiental. O governo deve enviar projeto de lei criando o
seu próprio mosaico. EDUARDO NUNOMURA