Publicada em 4 de agosto de 2005
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Enviado especial
BELO HORIZONTE
Társila Gutenberg Madureira Silva sonha com uma vida pela metade. Deportada,
ela chegou ontem ao Brasil com uma sacola de roupas e mais nada. Humilhada
numa perigosa e ilegal travessia para os Estados Unidos, viu desabarem seus
planos de comprar uma casa própria, oferecer uma vida melhor para a família
e chegar à universidade. A jovem de 20 anos espera agora realizar “metade
dos sonhos” que um dia ousou ter.
“Já vai estar bom, bom demais.” Brasileiros que só podem sonhar pela metade
voltaram ontem ao Brasil com Társila. Foram 318 em dois aviões na primeira
deportação do ano. Na chegada, eles cantaram o Hino Nacional.
Muitos outros virão daqui em diante. Há 25 mil imigrantes ilegais detidos
nos Estados Unidos. Alguns aguardam julgamento. Outros, só a deportação.
Todos correram riscos, mas sabiam deles desde que partiram do País.
O drama enfrentado por Társila remete a outro, o vivido pela família de Jean
Charles de Menezes, o mineiro morto pela polícia britânica. Ela é de Gonzaga
e era colega de Jean. Durante sua travessia pelo México, a jovem teve um
pressentimento ruim ao saber dos primeiros atentados em Londres. “Ah, estou
com um aperto no coração”, confidenciou a dois amigos, Ualisson e Sirlei,
mas foi convencida a prosseguir. Já tinham chegado longe.
Mas a jovem foi presa com todos os seus colegas. Na cadeia, com sorte, ligou
para sua mãe, Maria Zeronith – poucos conseguem o direito de dar
telefonemas. Ouvindo uma voz estranha, teve um segundo mau pressentimento.
Achou que alguma coisa ruim tinha acontecido com os irmãos.
Arrancou da mãe a notícia: Jean, um imigrante ilegal como ela, tinha sido
alvejado. “Fiquei arrasada. Ele era uma pessoa super boa.” Társila foi presa
como a maioria dos brasileiros que estão sendo flagrados ao tentar cruzar a
fronteira do México com os Estados Unidos.
Vão pelo sistema “cai-cai” da imigração: se a sorte ajudar conseguem visto
temporário de algumas semanas e de lá mergulham no mundo da ilegalidade
(Veja na página 3). Ela trabalhou no Brasil só em bicos, como vendedora de
roupas. Um serviço que rendia R$ 100, 200, 300, às vezes, um pouco mais. Em
Nova York, seu destino sonhado, seria faxineira ou cabeleireira. Ganharia
US$ 850.
“Nunca mais quero fazer isso”, disse. Com tantas humilhações no tempo da
prisão americana até beber um copo d’água passou a ser valorizado por ela,
que chegou com a pulseira de identificação da prisão.
DE VÁRIOS ESTADOS
No grupo dos deportados, a maioria é de Minas: cerca de 200. Depois, vêm os
de Goiás, Espírito Santo, Rondônia e São Paulo. Muitos ficam até alguns
meses presos, antes do retorno ao Brasil.
O goiano Roni de Moraes Correa, de 24 anos, um ex-operador de empilhadeira,
foi detido na rota México-Estados Unidos. Ele entrou como turista, já que os
mexicanos não exigem visto aos brasileiros.
Em território mexicano, negociou com um coiote local, uma pessoa que agencia
imigrantes que querem entrar ilegalmente num país, e decidiu arriscar.
“Tenho um conhecido nos Estados Unidos que ganha mais de US$ 4 mil”,
justificOU Correa. No Brasil, ele ganhava R$ 660.
A advogada britânica Harriet Wistrich reuniu-se ontem com um irmão de Jean
num hotel de Belo Horizonte. Sua viagem deveria ser para Gonzaga, mas ela
ficou na capital mineira. Com a colega Gareth Pierce, Harriet representa a
família de Jean na Justiça britânica.
O maior medo é o cai-cai – ser preso
BELO HORIZONTE
Para entrar nos Estados Unidos ilegalmente, enfrenta-se uma loteria humana.
É o sistema apelidado de “cai-cai”, no qual todos se arriscam a cruzar o
deserto do México para chegar aos centros de imigração e sair dali com um
“permesso”. Trata-se de um visto temporário, de 3 a 6 meses, ao fim do qual
o imigrante precisa apresentar-se à Justiça americana. Poucos fazem isso.
“Cai-cai” porque a maioria não chega ao destino. É presa antes.
Jorge Benedito da Fonseca Junior , de 21 anos, ficou no “cai-cai”. Em 18 de
maio, embarcou de São Paulo para a Cidade do México. No aeroporto, havia
uma placa com o nome de Edmilson.
Era a senha de seu coiote. Mas há os mais ousados que adotam a palavra
“Sol”, o nome da personagem da novela América, da Globo, que fez a
travessia. O mineiro de Poços de Caldas, no sul do Estado, uma das regiões
que atualmente têm exportado mais imigrantes ilegais que Governador
Valadares, já saiu do Brasil com a indicação de seu coiote. O acordo seria
pagar US$ 10 mil se chegasse ao seu destino e começasse a trabalhar.
Do aeroporto, o grupo foi levado a um hotel. O de Fonseca Junior era o
Puebla, mas há muitos outros no esquema, descobriram os parlamentares
brasileiros da CPI da Emigração Ilegal. Lá eram vigiados por seguranças
armados de metralhadoras. “Eles ameaçavam nos matar se fugíssemos.” No dia
seguinte, seguiram numa caminhonete até Novo Laredo, na fronteira. Os oito
dessa leva enfrentaram mais de 40 horas de estrada poeirenta, sem água ou
comida, sem direito de urinar.
No meio do caminho, os coiotes e imigrantes foram achacados por policiais
mexicanos. Oito vezes. Todos sabem do esquema e lucram com o sofrimento
alheio. Cobraram de US$ 500 a US$ 600 do motorista da caminhonete. Roubaram
jóias, relógios, bijuterias, dinheiro e até roupas dos imigrantes. Fonseca
Junior havia sido aconselhado a largar o que trouxera no hotel. Na divisa
com os Estados Unidos, todos tiveram de atravessar o Rio Bravo.
“Passei nadando, a correnteza era forte, mas não havia bóias para todos”,
lembra o mineiro. As mulheres têm preferência. Lá, a orientação era seguir
até uma estação de tratamento de água. O grupo tinha de ir até uma cerca de
arame, onde agenciadores esperavam com alicates. Tudo à luz do dia.
SOLO AMERICANO
Já nos Estados Unidos, o destino era chegar a Laredo, no Texas. Eles foram
levados por vans e pernoitaram em mais de uma casa de mexicanos da região.
Circularam por estradas que pareciam dar voltas, tudo para despistar os
imigrantes e evitar que denunciassem o esquema à polícia, em caso de prisão.
Nessas habitações, tinham de pedir para ir ao banheiro, comiam mal e se
acomodavam num grupo de quase 18 pessoas.
Depois, seguiram viagem escondidos num fundo falso de um caminhão.
Espremidos sob dois colchões, mal podiam respirar. “Fomos pegos e dei graças
a Deus, porque não agüentaríamos mais”, lembra Fonseca Junior. Novas
humilhações. Ele passou por sete cadeias, sem direito a falar com os amigos,
ir ao banheiro, telefonar. “No primeiro dia, entraram quatro escorpiões na
cela. Reclamei e a sargento disse que se fosse picado, voltaria mais cedo ao
Brasil.” O mineiro não voltou cedo, como tripudiou a policial. Eduardo
Nunomura, enviado especial
Deputado faz paralelo com o tráfico de órgãos
ESQUEMA: A comparação de salários americano e brasileiro ajuda a explicar a
atração dos imigrantes. E são eles enviam grandes somas ao País. Segundo o
Banco Interamericano de Desenvolvimento, brasileiros no mundo enviam cerca
de US$ 5,4 bilhões.
Para o deputado Geraldo Thadeu (PPS-MG), que esteve num dos aviões da
Transmeridien Airlines, fretado pelo governo americano por US$ 500 mil e
integra a CPI da Emigração Ilegal, há grande paralelo entre tráfico de
órgãos humanos e imigração ilegal. “Não tenho dúvida de que existe uma
organização criminosa para levar brasileiros aos Estados Unidos.” E.N.