HAITI: A CAMINHO DAS ELEIÇÕES Guerra em favela acalma Haiti

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Publicada em 2 de outubro de 2005
O Estado de S. Paulo

Eduardo Nunomura
PORTO PRÍNCIPE
O Haiti e o pequeno Clarence Utyle vivem lutas distintas percorrendo
caminhos comuns. Primeira nação independente de escravos do mundo e hoje um
arremedo de país, o Haiti espera realizar no mês que vem eleições para dar o
primeiro passo na retomada da democracia e sair de uma grave crise
institucional. Aos 4 anos, o frágil menino sofre de uma anomalia visível na
sua nudez que é só parte de um drama. Ele é miseravelmente pobre, vivendo na
mais violenta favela haitiana e sem que ninguém, muito menos sua mãe, possa
curar sua doença ou matar sua fome. Nos dois casos, sobreviver já é uma
vitória.
Crianças pobres são comuns no Haiti. Pertencem a famílias que se sustentam
com menos de um dólar por dia e vivem o presente, nunca o futuro. Monita
Sezar, mãe de Clarence, não tem acesso a posto de saúde e não imagina quando
terá condição de pagar uma escola para o filho. Por enquanto, o menino
vagueia pelas ruas de Cité Soleil, a violenta favela de mais de 300 mil
habitantes. Ora está em meio a mulheres empacotando carvão, como sua mãe faz
todos os dias. Ora circula ao lado de jovens quimeras armados, que fazem
questão de desafiar o poder. E em algumas ocasiões se refugia de violentas
operações de militares estrangeiros, incluindo as dos brasileiros.
Cité Soleil é hoje o problema e a solução. Evidencia algumas das maiores
dificuldades do Haiti que vai às urnas dividido, em fins de novembro. Em 6
de julho, a Minustah – a força de paz das Nações Unidas – fez uma operação
de guerra na favela. Ordenada pelo embaixador chileno Juan Gabriel Valdés,
chefe da missão da ONU, e tendo à frente o general brasileiro Augusto Heleno
Ribeiro Pereira, a ação envolveu mais de 400 soldados e 40 veículos pesados
e deixou dezenas de civis mortos, entre eles Emannuel Dread Wilmé, influente
líder de gangues armadas. O mais inesperado: muitos moradores passaram a
odiar a Minustah.
“Não podíamos tolerar que um grupo de 50 indivíduos continuasse espalhando o
pânico em Porto Príncipe e destruindo a possibilidade de tranqüilidade para
o país”, disse Valdés. A saída foi adotar a tática militar do
“encapsulamento”. À operação de guerra, seguiram-se ações para isolar Cité
Soleil e, sobretudo, os partidários do Lavallas, movimento contrário à
Minustah. Fiéis defensores do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que caiu
em fevereiro de 2004, eles tentavam desestabilizar o país com uma onda de
seqüestros, disparos pelas ruas de Porto Príncipe e matança indiscriminada.
Sem Wilmé, as gangues parecem ter se desmobilizado e perdido força.
Hoje, Porto Príncipe, a capital de 3 milhões de habitantes, é uma cidade
mais calma do que há 15 meses, início da missão de paz da ONU. Os carros
novos voltaram a circular. Muitos comércios reabriram e não se vê mais tanto
lixo nas ruas. Em Bel-Air, os tap-taps, as lotações haitianas, antes banidos
pelas gangues, transitam normalmente.
Desde agosto, o terceiro contingente do Exército brasileiro enviado ao país
passou a ter maior presença, transmitindo segurança para a população da
capital. Em créole, veículos militares divulgaram mensagens como “Bairro sem
bandido tem escolas e postos de saúde abertos, crianças jogando bola na
rua”. Foram bem recebidos. “Era o nosso carro de pamonha”, brinca o
tenente-coronel André Luis Novaes Miranda.
No restante do país, a situação está normalizada. A miséria é a mesma e as
dificuldades são traduzidas na luta para ganhar dinheiro. Yolanda Joa, de 18
anos, mora na divisa com a República Dominicana. Viaja quilômetros para
comprar sapatos chineses em Cabo Haitiano e revendê-los na cidade vizinha,
Dajabón, às segundas e quintas-feiras, únicos dias de fronteira livre.
“Arriscamos aqui porque no Haiti ninguém compra nada”, diz ela. Os riscos
vão da travessia nas perigosas estradas em ônibus sucateados até a venda da
mercadoria para dominicanos que cada vez mais querem distância dos
haitianos. Só em maio, mais de 3 mil foram deportados.
ISOLAMENTO
Ao menos a violência não está tão presente no interior. Ex-militares que
tumultuavam a vida de Cabo Haitiano, norte do Haiti, exigindo a reinstalação
do Exército foram praticamente silenciados. A maioria seguiu para a capital
reivindicando o pagamento de pensões ao governo interino e não preocupa mais
o contingente chileno. Em Gonaïves, onde há um ano o furacão Jeanne arrasou
a já devastada cidade de 200 mil habitantes, as tropas argentinas atuaram em
frentes humanitárias, conseguiram interromper o ciclo de gangues armadas,
mas não diminuíram a força das rádios. São mais de 10 estações que incitam a
população conforme a tendência que apóiam. Noticiam apenas o que lhes
interessa. Para a Minustah, é um problema preocupante em todo o país.
Nesse cenário, Cité Soleil virou o patinho feio da história. É como se uma
favela problemática do Rio fosse isolada e a população indagada se preferia
ficar com o resto da cidade ou a parte violenta. Para todos os efeitos, a
Minustah nega a tática.
Primeiro, afirma que os Lavallas vão participar das eleições. Houve, de
fato, a inscrição de candidatos ligados ao partido Família Lavallas, mas nem
todos reconhecem isso (ler na página ao lado). Só um comitê de cadastramento
de eleitores foi instalado na entrada da favela. “A única saída seria um
presidente do Lavallas”, torce Willy Gerançon, de 26 anos, na fila de um
posto eleitoral. “A situação até agora, com essas missões estrangeiras, não
mudou. Ainda falta tudo em Cité Soleil.”
O isolamento tem um preço alto. A provável hérnia do pequeno Clarence Utyle
(ver foto acima) poderia ser facilmente tratada num hospital. Cité Soleil só
tem um, mantido pelos Médicos Sem Fronteiras, que atende emergências
gravíssimas, como os feridos de 6 de julho. Observados à distância por
tropas jordanianas, jovens armados continuam emitindo sinais de força. Nas
ruas, exibem fuzis e pistolas tal como os traficantes nos morros cariocas.
Impedem a entrada do poder público, que parece não se esforçar para estar lá.
A Minustah agora é vista como invasora pelos rebeldes do país. E os antes
idolatrados soldados brasileiros já não são mais unanimidade. Por ora, as
diversas tentativas dos militares de agradar ao povo com partidas de
futebol, projetos sociais e ações humanitárias surtem algum efeito. Mas os
haitianos já dão sinais de que querem muito mais que isso.
Viagem a convite da Minustah

Eleição haitiana terá poucos eleitores e muitos candidatos
PORTO PRÍNCIPE
E se as eleições haitianas fracassarem? O establishment da ONU já trabalha
com essa hipótese, tamanha a imprevisibilidade das urnas. Numa corrida em
que há 32 candidatos à presidência, uma desconhecida, mas previsivelmente
reduzida participação de eleitores e fatores de instabilidade latentes,
esperar que nasça desse processo um novo país é utópico. “O Haiti no dia
seguinte às eleições será bastante parecido ao de hoje”, diz o embaixador
chileno Juan Gabriel Valdés, chefe da missão de paz da ONU, sinalizando um
futuro nebuloso. “O próximo governo vai precisar de mais quatro anos de
apoio da comunidade internacional. Pensar que se pode abandonar o país
depois de recém-eleito um governo é uma irresponsabilidade.”
As eleições serão marcadas pela desigualdade, uma vez que não há
financiamento público de candidatos. O político que tiver mais recursos
contará com outdoors, propaganda nas rádios, muitas vezes controladas por
eles mesmos, e cabos eleitorais. Quem não tiver, terá de apelar para o
carisma e as pichações que já brotam por toda a parte em paredes cinzas das
casas haitianas, nunca acabadas.
O fantasma que atormenta o Comitê Eleitoral Provisório (CEP), responsável
pela organização das eleições, é a participação popular. Na verdade, a falta
dela. A previsão inicial era de 4,5 milhões de eleitores – no Haiti,
estatísticas são manipuláveis. Hoje, se houver 3 milhões de inscritos já
será uma vitória.
Depois de uma corrida inicial, os haitianos deixaram vazios os postos de
registro eleitoral. Num país onde metade da população é analfabeta e sem
acesso a qualquer vestígio de poder público, muitos não sabem que haverá
eleições. Para evitar o fiasco, um decreto do governo provisório determinou
que o título de eleitor serviria também como carteira de identidade –
haitianos não têm RG. Até o calendário está ameaçado e ninguém garante que o
primeiro turno ocorrerá em 20 de novembro. Votar não é obrigatório. “O
essencial é o qualitativo e não o quantitativo”, afirma Gérard le
Chevallier, chefe do CEP.
Desde o fim de fevereiro de 2004, o Haiti vive uma situação de instabilidade
política. Grupos rebeldes forçaram a saída do presidente Jean-Bertrand
Aristide, com apoio dos Estados Unidos e França, que em seguida enviaram
tropas. Quatro meses depois, a ONU iniciava a missão de paz. E a partir daí
o Brasil se envolveu numa arriscada tarefa diplomática ao aceitar liderar
uma força militar no país mais pobre das Américas.
É o segundo maior esforço militar brasileiro no exterior, só atrás de uma
missão no Oriente Médio nos anos 50 e 60 (ver quadro na pág. 20). Pela
primeira vez, países latino-americanos, como Brasil, Argentina, Chile,
Uruguai e Peru, comandam uma missão desse porte.
MANDATO
A Minustah foi criada para cumprir um mandato claro: estabilizar o país,
permitir a realização de eleições democráticas e desarmar os haitianos. A
última meta já foi deixada de lado. As apreensões de armas foram irrisórias
e nenhum programa sério de desarmamento foi lançado. O Haiti vive uma
situação de relativa calma, mas é difícil prever o dia seguinte com tantos
grupos armados. Por isso, as eleições viraram uma incógnita. Tanto pode ser
a comprovação do fracasso da ONU e dos latino-americanos na liderança da
missão, como o primeiro passo na formação de um governo legítimo.
Apesar de haver 32 candidatos, dois lados opostos devem polarizar a atenção.
Os partidários do Família Lavallas, cujo candidato preferido está preso, o
padre Jean Juste, e não concorrerá, e o influente Grupo 184, de empresários
haitianos apoiados pelos Estados Unidos. Anos atrás, empresas haitianas
explorando mão-de-obra barata eram um grande fornecedor de uniformes e
componentes eletrônicos para os americanos. “Somos maioria e fomos
excluídos. Vamos boicotar e protestar contra essas eleições”, ameaça John
Joël Joseph, conselheiro do Lavallas. Já a elite haitiana ainda não definiu
seu candidato. Mas, numa nação miserável, dinheiro de campanha pode fazer
toda a diferença. Eduardo Nunomura

O BRASIL NO HAITI
Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah)
° Início: 1/7/2004
° Fim do mandato: 15/2/2006 (renovável)
° Atual contingente brasileiro: 1.200 militares
Maiores participações brasileiras em missões da ONU
° Força de Emergência da ONU (Unef), de janeiro de 1957 a
julho de 1967, com 6.300 homens para o Batalhão Suez
° Minustah, com 3 contingentes sucessivos de 1.200 soldados
O TORTUOSO CAMINHO HAITIANO
História recente é marcada por intervenções estrangeiras
NOVEMBRO DE 2000: Jean-Bertrand Aristide vence eleições presidenciais com
91,5% dos votos (números contestados).
2001 A 2003: Isolado politicamente, Aristide acusa os EUA de treinarem
paramilitares e apoiarem a criação de um grupo de capitalistas haitianos
contrários a ele.
FEVEREIRO DE 2004: Rebeldes iniciam conflitos em todo o território para
derrubar Aristide.
29 DE FEVEREIRO: Aristide renuncia, sob pressão dos EUA e França, que
imediatamente enviam tropas. Governo interino do tecnocrata Gerard Latortue
assume.
1.º DE JULHO: O general Augusto Heleno Ribeiro Pereira assume o comando
militar da Missão da ONU para a Estabilização do Haiti. Contingente
brasileiro tem 1.200 soldados.
SETEMBRO A DEZEMBRO: Força da ONU começa a atuar com mais força em bairros
como Cité Soleil e Bel-Air. Marchas pró-Aristide são controladas pelas
tropas.
MAIO: Militares brasileiros iniciam retomada de Fort National, em Bel-Air,
ocupado por gangues.
6 DE JULHO: Megaoperação militar em Cité Soleil resulta na morte do líder
de gangues Emmanuel Dread Wilmé, e vira marco para a retomada da
estabilidade.

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