Publicada em 20 de fevereiro de 2006
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
PIRAPORA DO BOM JESUS
Nas romarias, negros faziam a batucada separados dos brancos
Há um pezinho de samba paulista em Pirapora do Bom Jesus, a terra da romaria
e das espumas poluídas do Rio Tietê. Uns falam em origem, berço do gênero.
Outros, mais apaixonados, preferem dizer que está ali, na pacata cidade de
15 mil habitantes, o elo perdido entre a batucada das escolas que fazem o
desfile no sambódromo e o bumbo tocado na virada do século 19 para o 20. É
difícil ligar uma coisa à outra, mas de uns anos para cá a prefeitura tem se
empenhado nessa tarefa. Recriou um grupo de samba de roda, convencendo os
dois últimos remanescentes a participarem do projeto, e vende a idéia de que
o município gosta de sambar.
“O samba paulista começou em Pirapora”, diz Maria Esther Camargo Lara, com a
autoridade de ter sido a primeira mulher branca a fazer parte do samba de
roda na cidade. Hoje, aos 81 anos, ela divide com João Alves do Amaral, o
João do Pasto, 12 anos mais novo, a tarefa de ensinar como era feita a
batucada. Ela canta, ele toca o reco-reco de bambu. Outras 20 pessoas tocam
e dançam nos encontros do grupo. “Se puxar uma raiz, vai ver que o samba
brotou daqui”, afirma o companheiro musical de Maria Esther.
Um estudioso, um sambista da velha guarda e uma militante cultural completam
essa resistência pelo samba de roda. O antropólogo Marcelo Manzatti tem
estudos sobre o samba rural paulista. Neles, reforçou a idéia de que a
cidade reuniu, de fato, condições para se tornar um ponto de encontro das
origens do samba paulista. “O samba de Pirapora influenciou diretamente esse
ritmo, até a primeira fase dos cordões, nos anos 50.”
Tudo começou nas romarias depois da descoberta da imagem de Bom Jesus nas
águas do Tietê, no século 18. Afluíam nessas caravanas romeiros de várias
partes do Estado. Os negros eram maioria. Levavam instrumentos, como caixas,
chocalhos, pandeiros, cuícas e o bumbo. Tocavam por horas, desafiavam-se
entre si, compondo muito de improviso. No início do século 20, ficavam nos
barracões, posteriormente derrubados pela Igreja – fato que contribuiu para
a decadência da festa. Os fazendeiros brancos também começaram a fazer seu
batuque.
Nos anos 1930, o escritor Mário de Andrade, nas suas andanças pelo País em
busca de sua identidade cultural, registrou suas impressões sobre a música
praticada em Pirapora, quando samba e batuque eram a mesma coisa para os
negros. “O bumbo está bem atento. Quando percebe que a coisa pegou e o
grupo, memorizando com facilidade o que lhe propôs o solista, responde
unânime e com entusiasmo, dá uma batida forte e entra no ritmo em que estão
cantando”, escreveu.
Com a música disseminada pelo Estado, a partir de várias origens, ritmistas
da capital, como os fundadores de cordões e, depois, das primeiras escolas
de samba, fizeram de Pirapora um ponto de encontro deles. Freqüentavam a
cidade o compositor Geraldo Filme, Madrinha Eunice (fundadora da primeira
escola, a Lavapés), Dionísio Barbosa (fundador do Grupo Barra Funda), Carlão
do Peruche. “O samba paulista surgiu da Barra Funda, mas a batida sofreu
influência do bumbo de Pirapora”, afirma o sambista Osvaldinho da Cuíca, de
66 anos, uma espécie de padrinho do grupo e defensor desse resgate cultural.
“Mas hoje é muito difícil reconhecer essa influência.”
Entre os anos 1940 e 1950 nasceu o grupo Samba de Roda, liderado por
Honorato Missé, filho de fazendeiro. Ele dizia que ia fazer um samba,
mandava convidar Maria Esther para dançar e João do Pasto para tocar. No
começo, brancos e negros tocavam separado, o delegado achava que podia haver
briga. “Mas a gente era tudo amigo”, lembra João do Pasto.
Daí em diante, São Paulo com mania de ter um carnaval carioca começou a
mimetizar o desfile daquelas escolas. Pirapora deixou de ser uma referência.
O batuque desapareceu. Nos fins dos anos 90, a prefeitura decidiu resgatar a
tradição. Em 2003 inaugurou o Espaço Samba Paulista Vivo Honorato Missé.
Coisa para turista ver. A responsável pelo grupo, Dalva Matias dos Santos,
vive hoje às turras para controlar o gênio de Maria Esther, que acha que
ninguém samba ou faz samba como se fazia no passado.
E neste carnaval não vai ter samba de roda.