Publicada em 19 de julho de 2009
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Naiana Oscar
Renato Machado
Dados sigilosos de um motorista em São Paulo custam R$ 0,40. Nas mãos de empresas e despachantes, os centavos se multiplicam e podem virar até R$ 3 mil no esquema de renovação de habilitações. De posse desses cadastros, eles se oferecem para “limpar os pontos” e desbloquear cartas suspensas, sem que o condutor tenha de pisar no Departamento Estadual de Trânsito ou frequentar cursos de reciclagem. A venda de facilidades vem ocorrendo fartamente no mercado, mesmo depois de iniciativas do órgão para coibir fraudes com a Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
Nas últimas duas semanas, o Estado conheceu esse mercado de facilidades. Escritórios de mala direta vendem listagens com dados dos veículos e de motoristas para autoescolas, despachantes e “empresas de poste”, que oferecem serviços de renovação pelo prazo mais curto – às vezes, sem necessidade da reciclagem. Algumas até recorrem a condutores laranjas, que assumem os pontos para livrar infratores da punição.
É um mercado que viceja diante da enormidade de carteiras bloqueadas. Num único dia, 526 CNHs são suspensas pelo Detran paulista, que é responsável por 18 milhões de condutores. A quantidade é 18 vezes maior que a do Rio. Num mês, a capital suspende 10 mil que estouraram a pontuação, o mesmo que o Estado vizinho pune no ano todo. Para piorar, um terço deles deixa de ser notificado assim que ultrapassa o limite de 20 pontos em 12 meses – por falta de capacidade de atendimento.
Hoje, dois terços dos condutores notificados da suspensão pelo Diário Oficial preferem não se defender. Optam por esperar até o vencimento da CNH, por dois motivos: o Detran não vai atrás dos infratores e, mesmo se forem pegos numa fiscalização de trânsito, não terão a carteira apreendida. Assim, só na renovação cumprem a punição que ficou pra trás. É nesse momento que surgem as empresas que vendem facilidades. Cobram entre R$ 1 mil e R$ 3 mil para renovar o documento. Em entrevistas gravadas e apresentando-se como motoristas com carteira suspensa, a reportagem verificou que dez delas disseram que há um esquema de pagar para que a penalidade seja a mínima – de um a dois meses.
Despachantes e advogados ouvidos pela reportagem garantem que o esquema existe e inclui pagamentos de até R$ 3 mil pelo serviço de renovação de CNHs que tiveram a pontuação suspensa por excesso de pontos. O motorista assina uma procuração para a empresa, que inicia a defesa do infrator. No 4º andar da sede do órgão, no Parque do Ibirapuera, a empresa entrega a habilitação, um boletim de ocorrência ou uma declaração de perda do documento. Ela orienta que na suspensão o motorista não dirija, porque se for flagrado numa blitz está sujeito à cassação da carta.
“Após a suspensão da carteira, você tem de fazer reciclagem, aquelas 30 horas de aula estudando direção defensiva, essa história toda. Fazendo conosco, eu tenho como quebrar isso pra ti”, diz um homem chamado Tadeu Matiello, que se define como assessor de legislação de trânsito. “Você não precisa fazer o curso. Só vai ao local que nós indicamos, recolhe as digitais, como se estivéssemos fazendo um curso presencial”, diz ele, que cobra R$ 750 pelo curso e para “abrandar” a pena.
O Detran afirma que essas empresas “vendem fumaça” e no Setor de Pontuação ninguém é privilegiado. “O que o despachante oferece é um favorecimento de não vir aqui”, diz o diretor da Divisão de Habilitação, Francisco José de Albuquerque Soares da Silva. “Não tem como garantir pena mínima, porque quem vai aplicá-la é uma autoridade. Não temos nada sendo investigado sobre funcionários do Detran que agilizam o processo.”
Magistrado foi assediado, mesmo sem estourar limite
Tudo funcionava bem, até que empresas especializadas em recursos de multas ligaram para quem não deviam, o desembargador do Tribunal de Justiça Antônio Carlos Machado de Andrade. Protegido pelo sigilo, o juiz se indignou ao saber que haviam obtido o telefone de seu gabinete e também o de sua casa. Para piorar, Andrade não havia estourado a pontuação da Carteira Nacional de Habilitação. Seu registro não havia sido publicado no Diário Oficial.
A primeira ligação foi em 23 de março, quando a União Assessoria de Trânsito ligou, informando ao desembargador que ele possuía 54 pontos na CNH. O juiz retornou a ligação e conversou com um funcionário que se ofereceu para resolver o problema. Outras duas empresas, Nova Aliança e FP Assessoria, repetiram a oferta de serviço no dia seguinte, quando o desembargador prestou queixa.
Foi aberto um inquérito que corre no Fórum da Barra Funda. Inicialmente, as empresas alegaram que consultavam os pontos no site do Detran, de onde obtinham o nome completo do motorista. O restante dos dados vinha da internet, pelas páginas do Google, da Associação Comercial ou da Telefônica. “Reduzimos um pouco essa prática quando passamos a exigir que os usuários precisem digitar, além do registro da CNH, o número do CPF”, diz o diretor da Divisão de Habilitação do Detran, Francisco José de Albuquerque Soares da Silva.
Mas, no inquérito, que já é do conhecimento da Corregedoria do Detran e do Departamento de Investigações Criminais da Polícia Civil, as empresas admitiram que compram banco de dados de uma outra companhia, a Mald Mala Direta, localizada na zona sul. As informações de cada pessoa seriam vendidas por R$ 0,40. O telefone e o endereço do desembargador provavelmente saíram do cadastro da Mald.
Essa investigação, contudo, pode não chegar à conclusão nenhuma. Concessionárias de veículos e seguradoras vêm oferecendo os bancos de dados a empresas desse mercado. Basta, então, cruzar essas informações com a listagem do Diário Oficial, como já vem ocorrendo.
“Há possibilidade de vazamento em algum lugar do banco de dados, em que alguém possa ter acesso ou pegar por meio de CD. Esse banco de dados é compilado entre Detran, Polícia Rodoviária Federal, prefeituras e DER (Departamento de Estradas de Rodagem)”, afirma Gilson Silveira, do Detran. O que o órgão paulista sugere é que as informações podem ter vazado de fora de sua alçada de responsabilidade. “Tanto podem ter gravado na base da Prodesp como no próprio Denatran.”
Na Justiça, mais de 450 ações para impedir a suspensão
Há sete anos, o taxista Isac da Costa foi ao Detran depois que suspenderam a sua habilitação. Ele não levava a sério o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), achava que haveria um jeitinho. No órgão estadual, o documento foi recolhido pelo delegado. Ficou um mês sem dirigir, um prejuízo de R$ 4 mil. Em 2005, motorista de praça que é, recebeu uma nova notificação. Tinha como recorrer dos pontos, mas sabia que o tempo que levaria para esperar pelo processo administrativo já seria uma punição automática. Procurou a Justiça.
No escritório do advogado Rosan Coimbra, o taxista Isac da Costa ficou sabendo que um mandado de segurança garantiria a ele o direito de dirigir mesmo com a carteira de motorista cheia de pontos. “Teriam confiscado minha carteira se tivesse voltado ao Detran.”
Mais de 450 ações correm nas Varas de Fazenda Pública de São Paulo. Já foram concedidas várias liminares, permitindo que o condutor renove a habilitação. As defesas são elaboradas a partir de detalhes. “Eu exploro as falhas do Detran”, diz o advogado Coimbra. “O Detran primeiro bloqueia a carteira e depois instaura o processo. Ou seja, aplica a penalidade sem a existência de um processo administrativo.”
Segundo Coimbra, a suspensão das carteiras, com a divulgação das portarias no Diário Oficial, e depois o seu recolhimento, cria situações em que mesmo recorrendo administrativamente das pontuações o condutor se vê impedido de dirigir. “O bloqueio antecipado viola o direito do contraditório, do amplo direito de defesa e do devido processo legal”, diz.
O Detran afirma que já obteve vitória em 15 mandados de segurança, que questionavam a notificação. No caso, a defesa alegava que o motorista não havia sido notificado. Mas é obrigação do condutor informar a mudança de endereço.
Incorrigível no volante, o taxista Isac da Costa voltou a estourar os pontos em 2007 e dirige hoje com recurso na Justiça. Recentemente, viajou pela Rodovia Mogi-Bertioga e foi parado pela Polícia Rodoviária. O guarda checou seu documento no rádio, devolveu a habilitação e disse: “Boa viagem.”
2 técnicos fiscalizam 4 mil CFCs do Estado
Dois funcionários fiscalizam 4 mil Centros de Formação de Condutores (CFCs) em São Paulo. A distância. Um dos fiscais fica de olho no computador das provas da capital e o outro, nos exames do interior. “Tinha de ter um policial em todos os CFCs, para saber se quem está fazendo a prova é mesmo o condutor”, admite o diretor da Divisão de Habilitação do Detran, Francisco José de Albuquerque Soares da Silva.
Os dois funcionários do Detran escolhem aleatoriamente o nome de um candidato para ver quem está na frente da máquina. Só em casos bizarros como o de um homem fazendo o exame no papel de uma mulher, por exemplo, a avaliação é bloqueada. O CFC é suspenso e o candidato, notificado. Mas, mesmo flagrado, o motorista poderá fazer uma nova prova.
O curso de reciclagem só é obrigatório para quem ultrapassar os 20 pontos em 12 meses. Com a mudança do prédio do Detran, os cursos gratuitos na sede na zona sul deixaram de ser feitos. Restam duas opções oferecidas pelos CFCs. No presencial, o motorista frequenta seis aulas de cinco horas. No autodidata, o condutor recebe senha na matrícula e estuda a distância por cinco dias. Em ambas, é colhida a impressão digital do candidato.
PRESENCIAL
Mas com a chance de cumprir a medida pela internet, sem muito esforço os condutores infratores desapareceram dos centros de formação. O CFC Cruzeiro do Sul, na zona norte, é um dos únicos da capital que ainda oferecem o curso presencial. O difícil é formar turmas. Só 10% dos condutores que procuram a escola decidem frequentar as aulas. “É uma penalidade. Não pode faltar nem chegar atrasado”, diz o proprietário do centro, Edson Fleckenstein da Silva. “A pessoa já está revoltada porque perdeu a carteira. Fazer aula é o que ela menos quer.”
A minoria que opta por encarar a sala de aula é de motoristas idosos, que não têm afinidade com a internet. A realidade é parecida nos próprios cursos de renovação de CNH, em que o aluno não está “cumprindo pena”. O desenhista Euclydes Francisco Salgo Filho, de 60 anos, chegou a receber propostas para pagar pela renovação da carta, mas decidiu fazer as aulas por acreditar que em grupo aprenderia mais. “Não achei justo, perderia a oportunidade de evoluir”, disse. “Não me arrependo porque com as histórias dos colegas me tornei um motorista melhor.” Habilitado desde 1971, é a primeira vez que Euclydes estuda o Código de Trânsito Brasileiro, em vigor desde 1998.
OBRIGATORIEDADE
O presidente do Sindicato das Autoescolas de São Paulo, José Guedes Pereira, defende a obrigatoriedade do curso presencial principalmente em casos de reciclagem. “O motorista precisa voltar às cadeiras da escola para rever os conceitos”, diz. “Assim, o camarada vai escolher sempre a internet.” E a distância fica ainda mais fácil burlar as exigências.
CFCs e autoescolas investigadas desde o ano passado por fraude no fornecimento de carteira de habilitação continuam funcionando normalmente. Algumas oferecem, sem cerimônia, facilidades para que o motorista não realize o exame. “Temos a capacidade de gravar e comparar a foto com a imagem de quem está fazendo a prova. Mas isso é quando a gente verifica indício de fraude”, diz Albuquerque. “Não tenho como imaginar que todo caso é fraude. São milhares de provas feitas diariamente.”
Um modelo seguro exigiria um scanner de biometria em cada CFC. Para facilitar o monitoramento, a foto do condutor teria de aparecer na tela quando o fiscal acessasse a prova. A Prodesp estuda a adoção do sistema.
Em Santana de Parnaíba, o Detran tem um projeto em que a biometria é feita até nos profissionais do Ciretran. Em qualquer operação relacionada à primeira habilitação, renovação, reciclagem ou mudança de categoria, o funcionário é identificado pelas digitais. O órgão tem um prazo de um ano e meio para expandir o projeto no Estado, mas estima que até maio do próximo ano ele estará no ar.
Uma parte disso já está em operação na sede do departamento desde 1º de julho. Os candidatos à primeira habilitação são obrigados a registrar as digitais dos dez dedos. Até dezembro, o registro será ampliado aos candidatos à renovação. Os dados, além de abastecer o banco de dados do Detran, serão enviados à Polícia Federal. NAIANA OSCAR, RENATO MACHADO e EDUARDO NUNOMURA