Publicada em 14 de maio de 2006
O Estado de S. Paulo
Eduardo Nunomura
Profissionais da saúde já constataram: os jovens formados em Medicina estão
desistindo de ser pediatras. É um fenômeno novo, pouquíssimo estudado, mas
de efeitos devastadores se nada for feito para reverter o quadro. Se hoje
sobram vagas para a especialização em pediatria, num futuro próximo vão
faltar médicos que cuidem das crianças e dos adolescentes.
Nos hospitais e postos de atendimento das periferias, esse tipo de
profissional começa a rarear. Quem pode, opta por trabalhar em clínicas
particulares, mal remunerado pelos planos de saúde. E quem não tem escolha
enfrenta nos plantões a ira de pais desesperados por seus filhos. Em outras
palavras: a situação tende a piorar.
A pediatria só é a ponta mais visível da distorção do exercício da medicina
no Brasil. Baixos salários, muito trabalho, má distribuição deles pelo País,
desestímulo para se especializarem. A soma de fatores ajuda a entender os
números por trás do fenômeno. No ranking nacional dos últimos cinco anos,
foram oferecidas 5.518 residências médicas de primeiro ano em pediatria, mas
preenchidas 4.034. A taxa de ocupação em todas as residências pediátricas
foi de 72,8% – em clínica médica, o índice foi de 92,1%, e de cirurgia
plástica, 88%.
Quando um universitário se forma em Medicina, ele tem alguns caminhos a
seguir. Um dos mais almejados é a residência médica. Num período de dois a
cinco anos, ele se especializa em áreas como pediatria, oncologia,
oftalmologia, neurocirurgia e obstetrícia, entre outras. Nessa fase, mais
que um estágio intensivo, o jovem trabalha num hospital e lida com casos
práticos que vão lapidar sua formação. Sem isso, ele não passa de um
generalista, que aprendeu tudo nos livros da faculdade e treinou nos bonecos
plásticos ou nos cadáveres doados para experimentação.
O diretor da Faculdade de Medicina da Unoeste Fernando Pimentel tem
percebido a dificuldade da prefeitura de Presidente Prudente. Lê com
freqüência manchetes nos jornais locais: “População revoltada com falta de
médicos” ou “Posto municipal sem pediatras”. Pelas dez vagas abertas neste
ano para essa especialização no Hospital Universitário, só quatro
recém-formados se interessaram.
“A situação está se tornando caótica. Em breve, clínicos vão atender
pediatria, mas eles só sabem fazer o bê-á-bá.” Há poucos meses, numa reunião
no Conselho Regional de Medicina paulista, Pimentel quis chamar atenção para
o problema: “Alguém aqui teria coragem de entregar o seu filho com suspeita
de meningite para um recém-formado da USP.” Na sala com quase 20 colegas
também diretores de escolas médicas, ninguém respondeu.
DISPARIDADE
O alarme faz sentido. Das prováveis causas que têm afugentado os jovens
médicos da pediatria, nenhuma parece reversível num curto prazo. A principal
é a baixa remuneração. Um pediatra, depois de estudar seis anos e ter no
mínimo 5 mil horas de treinamento, ganha pouco mais de R$ 2 mil. Então ele
entra numa sala de parto e descobre, estupefato, que recebe R$ 20 por
cirurgia ante os R$ 110 de um obstetra. E se sente menos médico que outros
médicos.
“Há um paradoxo: o estudante demonstra muito interesse por pediatria nas
faculdades, mas na hora de decidir a especialização opta por outras áreas”,
diz Maria do Patrocínio Tenório Nunes, da USP e representante da Associação
Brasileira de Escolas Médicas na Comissão Nacional de Residência Médica
(CNRM). Ela arrisca dizer que os jovens estão preferindo as carreiras com
maior potencial de salário, ou seja, aqueles que prevêem procedimentos nas
consultas. São elas endocrinologia, dermatologia e cirurgia plástica, entre
outros modismos da profissão. “Eles estão de olho na vida futura.”
Neste ano, houve 8,73 candidatos para cada vaga disputada na pediatria do
Hospital das Clínicas (HC). Em dermatologia foram 50 interessados por vaga e
em clínica médica, 12,2. Depois de um ano de residência médica, Enna
Cristina Liu, de 26 anos, desistiu de fazer pediatria. No HC, descobriu que
sua vocação não devia ser aquela. Afinal, quem gosta da área não pode se
importar tanto com os cansativos plantões, o desgaste no contato com os
pacientes, a tensão na UTI, os megacuidados do berçário.
Formada pela Universidade de São Paulo, ela recomeçou em outra área, a de
medicina da família. Pensa em fazer nova residência, mas por enquanto atua
como médica de uma unidade básica de saúde no Ipiranga, com trabalho de 40
horas semanais e salário de R$ 4 mil. “Quero ter tempo para estudar, viajar,
ficar com os amigos, ir à igreja. Na residência médica tive de abrir mão de
muita coisa.”
Até os anos 90, pediatria figurou algumas vezes entre a mais cobiçada das
especialidades, quando havia uma prevalência de homens. Com o aumento
expressivo de mulheres estudando Medicina, a área pediátrica sofreu uma
feminização. Paralelamente, o mercado saturou-se. Hoje são 36 mil pediatras
no Brasil, um para cada 1.900 brasileiros de 0 a 19 anos – quase o dobro do
necessário, segundo a Organização Mundial da Saúde. E assim veio o declínio
da especialidade. Só restam os devotados.
“Antes havia poucas especialidades, hoje é o que não falta”, diz a pediatra
Vera Lucia Bezerra, da Universidade de Brasília e ex-secretária-executiva da
CNRM. Interessado em ganhar mais, trabalhando menos, o jovem procura
subespecializações. “Vejo que ele gosta de áreas relacionadas a máquinas, às
novidades.” Atrás de uma máquina, seguramente não há um pai ou uma mãe
cobrando a cura de seu filho.